22 dezembro 2007

A espiral do tempo




Alguns pensam que o tempo é uma linha reta. Começa-se num determinado ponto e segue-se em marcha batida para onde nos indica a flecha. Para outros, o tempo é um grande carrossel, em que os cavalinhos tangem infinitamente os mesmos lugares.
Cada um tem o direito de pensar o tempo como achar melhor, mais conveniente. Para mim, a melhor imagem do tempo é a da espiral. Como aquelas escadas que sobem como um caracol e dão medo de cair a quem olha pra baixo.
Alguns mais cultos chamariam, a escada e a figura geométrica, de helicoidal. Mas não há tempo para sermos cultos: o tempo é uma espiral, e pronto. E o que ganhamos com essa imagem do tempo em espiral? Que vantagem tiramos em subir (ou descer) pelo tempo dando voltas e sentindo vertigens?
As vantagens, sugiro eu, são exatamente as voltas e as vertigens. Se o tempo é uma espiral, a cada volta sua não passamos exatamente pelo mesmo lugar. Se estamos subindo, passamos mais acima. Se descemos, passamos mais abaixo. Para cima ou para baixo, haverá sempre uma novidade a nossa espera. Subindo ou descendo, nosso corpo se afetará tanto com o movimento quanto com a novidade. Daí a vertigem, daí a sensação de redemoinho, de mar agitado que o tempo às vezes nos traz.
Mas nem sempre é tempo de novidade e vertigem. Existem momentos de calma e repetição que merecemos desfrutar. É um tempo assim que eu desejo para você nas festas de Natal e Ano Novo. Em paz, na sua casa ou fora dela, com as pessoas queridas de sempre.
E se alguém ou algo novo se insinuar neste tempo, que esse novo seja acolhido na calma repetição dos momentos de confraternização que aprendemos a viver com nossos antepassados e teimamos em transmitir aos que sobreviverão a nós.

imagem obtida em
www.mat.uc.pt/.../conchas/imagens/helicoidal.png

16 dezembro 2007

Albatroz



Numa oficina de leitura, o menino viu pela primeira vez a palavra albatroz. Ela estava escrita no poema Navio Negreiros, de Castro Alves. O menino perguntou o que era albatroz e ficou sabendo que é um pássaro que vive no mar, junto aos navios. E que é desengonçado quando está no chão e muito desastrado quando pousa ou levanta vôo. Mas quando voa, o albatroz é uma das aves mais belas. É como os poetas, ouviu o menino. Desastrados na vida cotidiana e belos quando planam com as asas das palavras.
Alguns dias depois, o menino diz que viu um albatroz na televisão. Não o vira voando, mas parado no chão. Estava excitado com o aprendizado. A partir daí, toda a sua inibição com a leitura desapareceu e ele se apropriou dos versos em que o poeta pede: “albatroz, albatroz, dá-me tuas asas”.
A experiência do albatroz me fez lembrar das muitas palavras que conheci antes das coisas que nomeavam. E muitas vezes o conhecimento da coisa fez perder o encanto da palavra. Foi muito grande a decepção que tive quando soube do verdadeiro significado da palavra corolário. A coroa colorida que imaginava desapareceu para dar lugar a uma decorrência lógica.
Felizmente, não foi isso que aconteceu com o albatroz. A coisa vista reafirmou a beleza da palavra. Mais felizmente ainda, não foi só essa palavra, nem só este menino que se encontraram na oficina de leitura. São muitos os meninos e meninas, são muitas oficinas espalhadas pelas periferias das cidades. E precisam ser muitas, pois são muitas as palavras que voam por aí, procurando lugar para pousar. Primeiro nos olhos, depois nas almas dos meninos e meninas, ávidos de palavras.
Vejo cada jovem destes como um albatroz. Desengonçado no trato com o mundo, desajeitado nas tentativas de decolagem, mas belo e gracioso quando alça vôo com as asas mágicas da palavra.

10 dezembro 2007

Grandes são os desertos






Para Maria Valéria Rezende.

“Grandes são os desertos, e tudo é deserto.”
Transborda para o deserto argelino a voz do almuadem que soa no alto da torre de Beni-Isguen chamando os fiéis para a primeira oração do dia: Allahu akbar. E todos saem dos seus leitos para reafirmar que não há outro Deus senão Alá. E Maomé é seu único profeta.
“Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes – desertas porque não passa por elas senão elas mesmas. Grandes porque ali se vê tudo, e tudo morreu.”
Resvala para além das serras que cercam o deserto cinzento a voz do vaqueiro. E o seu canto não tem palavras, pois não canta para os homens. É para os bois, as vacas, os garrotes e os bezerros que ele lança o seu encantamento. E como Deus também não precisa de palavras, toma para si como um louvor a melodia que ondula até os céus. E de muito acima das serras, Deus contempla desolado aquela vastidão deserta, incrédulo de que a tenha criado. As almas que ali habitam são desertas de esperança. E são grandes apenas porque guardam este grande deserto dentro delas.
Por mais que o diabo o tente, Deus se nega a fazer qualquer milagre que mude a cor deste deserto. Tentando mais uma vez escrever certo por linhas tortas, manda vir do outro deserto, onde é louvado como Alá, uma gota de esperança antes que venham as chuvas. E a voz do almuadem entrega à voz do vaqueiro a boa nova de que, em breve, ali chegará uma mulher para tornar menos árida aquela terra.

imagens obtidas em:
gooutside.terra.com.br/.../vaivirarmar1_90.jpg

09 dezembro 2007

Cintilações de um palheiro




O que melhor diferencia o ser humano das outras espécies é a sua aptidão para a fala. E uma das coisas que dá mais prazer a certos membros da espécie humana é a oportunidade de falar mal dos seus semelhantes.
Eu me considero, neste aspecto, um homem de sorte. Desde o ano de 2001, de dois em dois anos, Waldir me entrega os originais de um novo livro, com carta branca para cortar, emendar e sugerir alterações no texto. Isto significa que, a intervalos regulares, eu posso falar mal de Waldir a pedido dele próprio. É o paraíso dos maledicentes.
Para meu desgosto, porém, a cada novo livro de Waldir vai ficando mais difícil o exercício desta arte que me é tão cara. Ele vem escrevendo cada vez melhor, com mais apuro, com mais economia. Esta evolução pode ser constatada pelos próprios títulos dos seus livros de poesia: Cantos da Vida de amar – Poemas e Solilóquios (2001), Amor que sai do casulo (2003), O Avesso da Pele (2005).
Quando Waldir me entregou os originais de Palheiro Cotidiano, dizendo que se tratava de contos e crônicas, meu coração, maldoso, exultou: teríamos novamente muito sobre o que falar. Mas ficamos a mingua, os dois. Como já disse na orelha do livro, “neste Palheiro Cotidiano cintilam agulhas preciosas que não fazem nenhuma questão de permanecer escondidas. Encontram-se muitas em cada página. São imagens, conceitos ou simples palavras que se entregam aos nossos olhos, como crianças pequenas brincando de se esconder.”

Convido, pois, todos vocês, a aceitar este livro como um presente que Waldir Pedrosa Amorim nos dá neste fim de 2007. E que as suas histórias, lembradas ou inventadas, venham se mesclar ao nosso repertório de boas memórias. E com isso nos tornemos, todos, pessoas melhores, tão boas como Waldir e seus escritos. Assim, creio, daremos bons motivos para que o mundo fale bem de nós.

Waldir Amorim

02 dezembro 2007

O dia da criação




E no sétimo dia, descansei... Antes de prosseguir, temos que estabelecer com exatidão qual é o sétimo dia da semana, para sabermos quando, de fato, descansei. Tem religião que acha que é o sábado, o que cria sérios problemas comerciais e trabalhistas. Certos viciados acham que se deve trabalhar todo dia. Outros, não menos viciados, acham que não se deve trabalhar dia nenhum. O protestantismo incipiente do meu pai e o catolicismo de conveniência de minha mãe me ensinaram que o dia de descanso é o domingo. Mesmo que em alguns calendários os domingos encabecem as semanas, não acho um bom exemplo cívico começar a semana descansando.
Dia bom, o domingo, pelo menos até as últimas horas da sua tarde. A partir daí, começa a apertar uma espécie de melancolia, uma ponta de angústia, um certo pesar, quase um luto pelo dia que acaba. É nessa hora que conhecemos a verdade do domingo. Não descansamos nada. Durante todo o dia fomos objeto de um trabalho silencioso, feito à nossa revelia, em que se compacta todo o afã que se desdobrará em cada dia da semana vindoura.
Domingo. O verdadeiro dia da criação.