30 março 2008

Contatos imediatos


Não sei quem são eles. Nunca os vi. Mas deixaram duas mensagens no muro da minha casa. Os muros de toda a vizinhança também estão manchados com esses caracteres indecifráveis, que gritam alguma coisa que não consigo entender. Um enigma que me faz uma exigência de decifração. Nossos muros se transformaram em versões pós-modernas da Pedra do Ingá.

Numa dessas minhas andanças vagabundas, passei pela porta de uma casa em que um menino, dos seus dez anos, mostrava aos amigos um caderno de papel pautado em que treinava este tipo estranho de caligrafia. Dizia, com evidente orgulho, que estava entrando na turma de um certo fulano, e que dali a pouco participaria de uma pichação. Isto nos permite um começo de entendimento. Saber fazer aquela caligrafia significa pertencer a uma turma, ter um grupo com que se identificar no esforço de desligamento necessário do círculo estreito da família.
Pelo tipo de grafismo e por certos sinais particulares, cada grupo deixa sua assinatura, numa espécie de disputa pela parede mais alta, pela marquise mais perigosa, pelo local mais desafiador, arriscando-se mesmo à violência e à morte pelos proprietários dos imóveis atacados.
O que essas inscrições neo-rupestres me sugerem é a existência de um imenso e concreto vazio nos indivíduos e nos grupos. Um vazio que se expressa na falta de um sentido lógico nas suas mensagens. Formalmente, existe um certo requinte gótico nos caracteres, deixando claro que não é uma expressão anárquica. Participar dela exige disciplina, como prova o menino com seu caderno.
Talvez nem mesmo os autores dessas mensagens saibam o que elas queiram dizer. Talvez fiquem tão perplexos quanto eu frente à sua obra. Uma coisa, porém, é certa: eles querem fazer contato conosco através dos nossos muros. Para comunicar o quê? Uma ameaça? Um pedido de socorro? Um grito de desespero?

Ilustração obitda em: dobispo.zip.net/images/ttsss.GIF

23 março 2008

Derivas


Os judeus celebram a Páscoa em memória da libertação da escravidão no Egito. Os cristãos comemoram a passagem para o novo tempo que a ressurreição do cristo anuncia. Liberdade, renovação. Que sentido fazem estas palavras fora do seu contexto estritamente religioso e litúrgico?
Um olhar mais atento sobre o mundo nos mostrará que a única liberdade visível é a que se anuncia como liberalidade do mercado. E todos sabemos o quanto isto tem acentuado a desigualdade entre os países e aprofundado a distância entre as classes. Quanto à renovação, ela se dá do ponto de vista estrito das mercadorias, o que nos empurra para um processo alucinado de consumo.
A humanidade ainda não conheceu a Páscoa. Somos todos errantes. Vivemos à deriva num deserto ético em que só os sistemas religiosos parecem apontar alguma salvação. E nisto reside a nossa miséria e nossa esperança. Miséria, porque todo o nosso percurso histórico ainda não conseguiu prover a humanidade dos instrumentos tecnológicos e ideológicos necessários a uma convivência de bonança e harmonia. Esperança, porque alguns desses sistemas religiosos apontam para certas saídas éticas que contemplam uma convivência na diversidade.
Judeus ou cristãos, muçulmanos ou budistas, pagãos ou ateus, nenhum de nós conheceu ainda a liberdade ou a renovação. Vivemos todos ainda à espera de uma Páscoa que nos resgate a todos deste êxodo em que ainda não vislumbramos nenhuma terra prometida. E enquanto esperamos a Páscoa, reconheçamo-nos humildemente como seres de incertezas e derivas. Que a humildade seja o nosso único ponto em comum. No mais, cada um que derive a seu modo.
O cuidado maior, enquanto derivamos, é não dar ouvidos aos que apregoam suas crenças como caminhos exclusivos para a salvação. Todos temos o direito de escolher se e como queremos ser salvos.
Ilustração :"Le Radeau de la Méduse", de Théodore Géricault (1791-1824).

13 março 2008

O fim do mundo


Há muito tempo assisto o fim do mundo. Uma certa parte do mundo, aquela em que vivo e vivi, padece de uma lenta e permanente agonia. Já se foram quase todas as casas em que morei. E junto com elas se foram as pessoas que ali moraram comigo. Os bairros de minha infância e juventude sofreram uma torção que os tornaram monstros de si mesmos. Não sei mais onde gastei a sola dos meus sapatos. Não reconheço as ruas que doeram em meus olhos e ouvidos.
Quanto mais vivo, mais despovoado fica o meu mundo. Inúteis muitos dos números de telefones em minha agenda. Ninguém mora mais ali, ninguém mais me espera neste bar, ninguém mais adivinha a hora em que os copos estão sendo trazidos para a mesa do terraço.
Não tenho mais circunstâncias. Eu sou eu e um grande vazio em volta. E o anjo do vazio espera pelo único acontecimento que o torne completo, perfeito, sem falha. O anjo do vazio espera por mim neste vazio. Para decretar definitivamente o fim do mundo. Deste mundo que ainda insisto em manter com minha mísera presença.
Mas ainda haverão de esperar anjo e vazio. Porque ainda tenho memória. Ainda sei como são os homens. E a memória me fornecerá o molde com que forjarei novas presenças. Breve terei um mundo mínimo com o qual recomeçar.
Clube do conto da Parahyba.
13.03.2008

Ilustração obtida em: br.geocities.com

07 março 2008

Os santos tombados




Um homem entrou na Catedral de São José dos Pinhais, no Paraná, e quebrou quase todas as imagens do templo. Cumpria ordens de uma voz interior.
Uma equipe da Prefeitura de Salvador demoliu o Terreiro de Candomblé Oyá Unipó Neto, quebrando quase todas as imagens e os objetos rituais. Cumpriam ordens de um prefeito evangélico.
O homem de São José dos Pinhais foi reconhecido como louco e enviado para um hospital psiquiátrico. Os homens de Salvador e o seu mandante estão sob investigação do Ministério Público da Bahia.
Um estado alterado de consciência pode justificar um ato individual de vandalismo. Não há nada, porém, que justifique o vandalismo oficial, claramente motivado pela intolerância fundamentalista usurpadora do poder democrático.
Tombados ao rés do chão, os santos católicos inspiram a piedade dos homens com o vândalo desvairado. Da mesma forma tombados, os santos negros exigem a justiça dos homens para os desvarios do poder.

03 março 2008

Ritos matinais


Apanhar a fruta podre
cheirar o podre da fruta
devolver a fruta ao chão.


Juntar pedaços de sonhos
escutar a voz dos sonhos
devolvê-los ao porão.