29 junho 2008

Assunto


Aconteceu hoje, no começo da tarde. Duas moças e um rapaz caminhavam por uma rua deserta de muros altos, quando ouviram gritos vindos de uma casa. Uma mulher suplicava que alguém telefonasse chamando uma ambulância. Seu filho tinha se sufocado. Nenhum vizinho saiu da sua paz dominical para acudi-la O grupo atendeu ao pedido. Em poucos minutos, a criança era atendida por uma equipe de para-médicos. Mas já estava cianótica. Talvez já estivesse morta.
O que chamou a atenção do grupo de jovens foi que, depois que a ambulância chegou, com sua sirene e seu aparato de filme de televisão, os vizinhos se acotovelaram nos portões de suas casas, especulando, dando opiniões.
Sei que mais uma vez estou me expondo à crítica dos amigos por criticar mais uma pequena perversão dos meus semelhantes. Mas não é de hoje este alheamento ao sofrimento vizinho. Fazemos de tudo para adiar o compromisso com a dor ao lado.
Os gritos da mãe não foram suficientes para tirar os vizinhos da pachorra dominical. Somente quando soou a sirene, quando abriram-se as portas para o espetáculo das urgências é que deram as caras. Para ver, para fruir, para contar depois no escritório ou no salão de beleza.
. Agora sim. Terão um bom assunto para animar o almoço e rechear os intervalos do Domingão do Faustão.

Imagem obtida em: artigosdepsicologia.files.wordpress.com/2007/...

20 junho 2008

Migrantes

Somos todos migrantes. Para ter o direito à vida, somos expulsos de um lugar que nos guardava como um paraíso. E o nosso primeiro trabalho é construir um simulacro desse espaço dentro de nós. Construímos um eu. E jogamos para fora dele tudo o que ousar perturbar a paz reencontrada. E assim criamos um outro diferente do que pensamos ser.
Somos todos migrantes. Fugimos da solidão procurando a união com os mais próximos, os mais parecidos a nós mesmos. Criamos um grupo e jogamos para fora dele tudo aquilo que ameaçar esta frágil comunhão. E assim criamos nossos inimigos. Pode ser os vizinhos, os moradores de outra cidade, outro estado, outro país. O de outra cor, outro credo, outra ou nenhuma posse.
Somos todos migrantes. Migramos da nossa humanidade e prendemos, humilhamos e devolvemos ao horror aqueles que nos procuram em busca de um pouco de paz e trabalho. Se antes fazíamos isto às escondidas, agora criamos leis que nos permitem o mal sem culpa.
Ainda somos migrantes. Nosso desejo nos faz migrar para um lugar onde todos poderemos nos reconhecer como semelhantes. Onde todas as diversidades serão acolhidas, onde a diferença será o nosso traço de união. O outro, o diferente, alegrará com luz e cor o cinza da nossa mesmice. Este lugar ainda está longe. Mas é para lá que migramos.

Imagem recolhida em www.radio.usp.br

17 junho 2008

Se arrependimento matasse...


Bem que Glória me avisou. Eu não tinha nada que falar sobre o assunto da porta aberta. Não desconfiava do tamanho do vespeiro em que estava metendo a mão. Fui chamado de ranzinza, insensível, desviante e portador de “neura de psicólogo”. Teve até uma coisa mais séria, o relato da mãe e da irmã de uma amiga muito querida que foi jogada para fora de um táxi aos quatro anos de idade, por causa de uma porta mal fechada.
Não sabia que estava criticando uma instituição nacional tão consolidada. E olha que já falei mal do PT, dos católicos, dos protestantes, até do Créu e a respectiva bunda da mulher melancia. Nunca recebi tanto e-mail em protesto quanto agora.
De qualquer forma, é bom saber que as pessoas se interessam pelo que escrevo. Melhor ainda é ver uma opinião minha ser criticada com respeito e carinho, mostrando a boa vontade de muitos em acolher um pensamento que foge à unanimidade.
Claro que continuo achando que a má fé e a hipocrisia costumam se esconder por trás de certos comportamentos estereotipados. Mas se alguém notar qualquer porta do meu carro mal fechada e minha neta Gabriela estiver lá dentro, me avise, pelo amor de Deus.

Imagem obtida em gatocomvertigens.blogs.sapo.pt

13 junho 2008

A porta e a senha


Eu voltava para casa num fim de tarde, o carro passeando pelas ruas internas do bairro. De repente, um carro de trás buzina, dá sinal de luz. Encosto para deixá-lo passar, mas ele emparelha com o meu. Lá de dentro, o motorista e o carona gritam quase com raiva: a porta. A porta está aberta.
Este é um comportamento urbano que me intriga. Ninguém pode ver uma porta de carro mal fechada. Já cheguei a pensar que seria uma das poucas demonstrações sobreviventes do famoso estilo cordial brasileiro. Já não penso assim. Esta pretensa solidariedade esconde, a meu ver, pelo menos duas atitudes em nada louváveis. Uma delas seria a necessidade de se mostrar preocupado com o semelhante, sem se comprometer com o seu bem-estar. Dá-se um grito, faz-se uma cara simpática de compreensão e toca-se (literalmente) em frente. A outra atitude, mais autêntica, seria aquela dos ocupantes do carro no meu bairro: eu sou melhor do que você e estou me dando ao trabalho de denunciar o seu erro.
Outro comportamento, de desenvolvimento mais recente, ocorre quando o vendedor da loja ou do posto pede para você registrar sua senha na maquininha. Ostensivamente, ele (e quem mais estiver ao redor) vira a cara para o lado, como quem diz: veja como sou honesto. Não quero saber a sua senha. Um mínimo de psicologia de botequim serve para deduzir o tamanho do seu desejo em nos roubar a senha.
A porta e a senha: dois símbolos do acesso a lugares restritos, são boas metáforas para a aproximação entre as pessoas. Pena que estejam sendo usadas como expressão da má fé e da vaidade.


Ilustração obtida em picasaweb.google.com/.../XcviuxGFKuV6XMOXjahU9w

08 junho 2008

Cara nova


Enquanto físicos, filósofos, psicanalistas e poetas não chegarem a um acordo a respeito do tempo, vamos sempre ter problemas ao falar dele. Ontem mesmo, conversando com Glória a respeito da idade de uma apresentadora de televisão, lembrei que a cara antiga dela era bem diferente da nova cara que víamos agora na televisão. Vejam bem, neste pequeno exemplo, a confusão que dá falar do tempo. A cara de antigamente era de uma pessoa nova. É, portanto, uma cara velha. A cara nova é a cara de uma mulher sábia e rodada, que se apresenta como novidade.
Perde-se no passado a cara nova que um dia já tivemos. Emerge da velha pele a nova cara que o tempo nos fabrica. Se gostamos ou não da nova cara, se aceitamos ou não a novidade, não é problema do tempo. O operário silencioso molda nossas máscaras à nossa revelia. E vinga-se dos que tentam mascarar o seu trabalho. A todos nós, sujeitos passivos do tempo, resta o trabalho de contemplar a cada dia as novidades que o espelho nos revela.


Imagem obtida em blogdajetx.blogs.sapo.pt

01 junho 2008

O poema roubado

São muitos os destinos dos poemas. Coração na chuva, um poema meu, feito quase de brincadeira, foi roubado. O ladrão é um cara de uns dezesseis anos, da Oficina de Leitura de Mandacaru. Desde que foi lido, o poema fez o maior sucesso entre a moçada. E o cara estava apaixonado por uma menina do grupo. Coisa séria e sabida por todos. Um dia, a menina trouxe uma cópia do poema diagramado por ela no computador, ilustrado por dois corações em chamas. Daí, ele passou a dizer que o poema era dele. E, na maior cara de pau, afirma que fui eu que roubei e publiquei no livro o poema que ele fez.
Acho que a forma simples e direta do poema cai no gosto da turma. Ele é assim:

Os olhos do meu amor
são muito grandes
e chovem.
E o meu seco coração
fica secando os olhos dela,
querendo se molhar nos olhos dela.
Eu digo ao meu coração: esquece.
Meu coração não está nem aí.
Meu coração está lá,
debaixo dos olhos dela,
dos enormes olhos dela
que chovem.
Que chovem muito,
deixando meu coração ensopado,
encharcado,
resfriado de amor.


Dos muitos destinos dos poemas, coube ao Coração na chuva servir de brinquedo a um amor adolescente, fornecendo juntos, amor e poema, um pouco de leveza ao mundo tenso em que se encontraram.

Imagem obtida em essenciafeminina1.spaces.live.com