26 março 2009

Roupa íntima




Não se deve deixar roupas íntimas penduradas na maçaneta interna da porta do banheiro. É possível que elas sejam esquecidas lá por muito tempo e não se pode medir as consequências desse esquecimento.
André havia se mudado para aquele apartamento há menos de uma semana. Era a primeira noite de sexta-feira que passava na nova casa. Por isso, a primeira coisa que quis fazer quando chegou do trabalho foi tomar um longo banho. Depois ia bebericar um uísque e pensar com quem fazer a inauguração. Uma namorada ou um punhado de amigos mais chegados que não reparassem na desarrumação.
Entrou no banheiro e sorriu com o hábito de fechar a porta. Lembrou-se que Antônio Maria dizia que a única vantagem de morar só é poder ir ao banheiro e deixar a porta aberta. Mas a água já escorria morna. A porta aberta ficava para a próxima vez.
André ainda esfregava a cara com a toalha quando viu um sutiã pendurado na maçaneta da porta. Bem que podia ser de uma de suas namoradas, quis pensar, mas logo se lembrou que nenhuma delas ainda estivera ali. Só podia ser da antiga inquilina.
Por um súbito e inexplicável pudor, André não tocou no sutiã. Não era direito pegar numa coisa tão íntima de uma pessoa que não conhecia. A toalha já enrolada na cintura, sentou-se na bacia sanitária e ficou estudando a peça pacientemente. De aparência um pouco desgastada, parecia reservado ao uso doméstico ou em saídas rápidas sob uma camisa de meia. Os bojos eram de tamanho mediano, mas o elástico desgastado sugeria um excesso de volume a ser sustentado. Seios ligeiramente fartos, concluiu André. E imaginou a totalidade do busto que ali se ajustaria.
Concluída a construção da parte superior, passou a deduzir o restante do corpo que habitara o seu banheiro. Simetria entre busto e quadris era coisa de miss dos anos sessenta. André preferia ver as ancas um pouquinho mais estreitas que o perímetro superior, mas fartas o suficiente para delinear uma curva descendente em direção ao ventre, estando a dona lendo um livro deitada de lado, uma das mãos apoiando a cabeça.
A cabeça. Eis um enigma enorme para André. Um corpo assim exigia cabelos longos. Longos e negros. Mas a mulher não podia ficar assim, só cabelos. Precisava de um rosto com olhos para ler o livro. Teria óculos, como toda mulher que lê na cama. E uma boca com lábios carnudos para balbuciar uma frase aqui e ali. E precisava de mãos delicadas para segurar o livro e passar as páginas. Faltavam ainda coxas, pernas e pés para que a dona se mexesse a cada passagem mais excitante da leitura.
André se vestiu apressado e deixou o quarto sem fazer barulho para não atrapalhar a leitura da mulher. Foi para a sala, preparou seu uísque, mas não telefonou para ninguém. Bebericou a dose e ali mesmo, no sofá, caiu no sono.
Quando André acordou na manhã do sábado, a luz do quarto ainda estava acesa. Escutou virar uma página de livro. Viu que não tinha nada para o café a manhã. Calçou as sandálias, levantou-se sonolento e falou alto em direção ao quarto: vou ali na padaria comprar alguma coisa. Volto já.


23 março 2009

Aeromoça

A moça queria um bem.
Queria um bem querer
para esperar, suspirar,
Um bem para maldizer.

Um bem para querer bem.
Bem bom de telefonar,
torpedear, orkutar,
de emessieneamar.

A moça queria um bem
que a fizesse tremer,
que a fizesse gelar,
que a fizesse morrer.
Que fizesse ela voar.



Foto: Ana Patrícia
Imagem obtida em http://www.flickr.com/photos/anap

17 março 2009

Crime contra a humanidade


Ainda no avião que o levaria, hoje, à sua primeira viagem à África, o papa Bento XVI declarou aos jornalistas que a distribuição de camisinhas apenas agravaria o problema da Aids no continente. O papa bate de novo na velha tecla da abstinência como prevenção à contaminação. Ora, se abstinência fosse remédio para alguma coisa, os problemas da igreja com o crimes de pedofilia de seus padres estaria resolvido. A atitude do papa e de seus seguidores é de um cinismo palmar. A Africa Subsariana, embora represente apenas 10% da população mundial, comporta 64% de soroppositivos. Noventa por cento desse total é composto de crianças com menos de 15 anos de idade. Querer impedir que medidas profiláticas sejam aplicadas a essas pessoas, por razões irracionais como as alegadas pela igreja católica, qualifica-se claramente como um crime contra a humanidade.

Imagem obtida em: modos-de-olhar.blogspot.com

15 março 2009

Pele e osso


Vinha da praia com Glória, perto da hora do almoço. Cruzamos com três meninas que voltavam da escola. Saltitavam em seus dez, onze anos e tagarelavam. O ouvido apurado recolheu de uma delas: claro que faço regime. Não quero ficar gorda como você. Deixamos o trio se afastar um pouco e nos viramos para conferir. Estavam todas no limite da magreza pré-adolescente.
Já de tarde, Glória volta da rua com um caderno promocional de uma loja de roupas. Fiquei escandalizado com a escassez de carne das modelos. E não é somente a ossada à flor da pele que me impressiona. A maquiagem, o olhar e a postura das moças, ajudadas pela ambientação das fotos, sugerem uma lânguida lassidez que deve exercer uma atração mórbida nas meninas que voltavam da escola.
Terapeutas e psicanalistas andam preocupados com a incidência de casos de anorexia e bulimia em seus consultórios. Tem muita gente boa tentando compreender a epidemia de pele e osso que assola as mulheres em todos os cantos do mundo ocidental.
É certo que o problema não é novo. Quando eu era menino, uma vizinha rechonchuda morreu de tanto tomar vinagre para emagrecer. O que está acontecendo é uma valorização social da esqualidez por parte da mídia, o que leva as adolescentes a aderir ao modelo como a um modismo qualquer, sem medir as conseqüências irremediáveis para a sua saúde.
Ana e Mia (como são carinhosamente chamadas a anorexia e a bulimia pelas suas adictas) põem a descoberto uma grave síndrome da contemporaneidade. Por não ter o que revelar do seu mundo interior, as pacientes exibem o que sustenta o interior do seu corpo. O esqueleto à mostra revela, enfim, o ideal estético da desumanidade. Sem a sujeira das tripas, sem a volúpia das carnes. Só a pele, os ossos e o nada.


11 março 2009

Vai acabar em inglês

A nova reforma ortográfica fez a besteira de tirar o circunflexo das terceiras pessoas do indicativo ou do subjuntivo dos verbos "crer", "dar", "ler", "ver", assim como de palavras terminadas com o hiato “oo”.
Não sou muito dado a premonições, mas acho a norma vai acabar contribuindo com o já avançado processo de americanização da língua brasileira. Não vai demorar muito para a moçada começar a ler palavras como “deem”, “leem” e “veem” como “dim”, lim” e “vim”. Da mesma forma, “enjoo” e “vôo” vão acabar sendo lidas como “enju” e “vu”.

Eu e o meu corretor ortográfico somos contra.

07 março 2009

Enigmas da noite

Vem, amigo.
vem andar comigo pela noite.
Pelas ruas escuras desta noite.
Tua presença m dá coragem
e juntos vamos atravessar todos os becos,
todos os cantos escuros desta hora.
A hora cheia.
A hora gorda da noite
em que as encruzilhadas espreitam
e as avenidas se estreitam
para quebrar nossos ossos.

Vem, amigo.
Anda a meu lado o mais próximo de mim.
Escuta o baque surdo sobre folhas.
Será o amor ou a morte entre dois corpos?
Apura o ouvido e fala:
esse líquido rumor
é vinho deitado em taça
ou sangue de veia cortada a navalha?

Chega-te mais e diz:
são cães ou homens que uivam
na crista deste muro?
A noite deita seus enigmas, amigo.
A noite é mãe e puta dos enigmas.

Mas nossos passos pelas ruas
derramam uma luz tênue sobre a noite.
E o leito da noite já não é ameaça de morte.
É mais um convite para se passar e ir embora.
Que a noite não quer ninguém com ela.

A noite quer ir-se embora.
Esvair-se na palidez que não fere.
Morrer para que nasça
- não o dia -
uma luz opaca, irmã,
a caminhar entre nós dois.



Imagem obtida em :
www.naomesquecerderespirar.blogspot.com