30 junho 2009

A hora e a vez



Uma eternidade se concentra nesses poucos segundos. Ele fixa o olhar na bola como se quisesse hipnotizá-la, antes de colocá-la no gramado. Os gestos são precisos. Todos os músculos de prontidão. Depois, os olhos miram o lugar por onde a bola fatalmente deveria entrar. Nenhuma dúvida em seu rosto. Nenhuma hesitação. Estava de frente do gol como um toureiro de cara com o touro.

Nenhum jornal publicou a foto do momento mais dramático da Copa das Confederações. Já se passavam 36 minutos do segundo tempo de Brasil e África do Sul quando Daniel Alves entrou em campo. Cinco minutos depois, o lateral direito deixava sua marca no placar que definiu a partida.

Depois chorou, correu como criança e levou cartão amarelo por ter levantado a camisa para mostrar o nome do filho recém nascido tatuado no peito. Tudo isso foi registrado e publicado nos jornais e nas revistas. Repetido pela televisão. Mas foi aquele ritual fechado e compacto que antecedeu o gol que ficou marcado na minha memória. A cena definitiva de um homem que soube fazer sua vez e sua hora.

21 junho 2009

Os mistérios do mundo


Vinha dirigindo meio distraído quando bati de frente com a faixa exibida sobre o muro da casa de esquina: “Colocamos mega-hair no nó italiano e na queratina com hora marcada”. Minha pobre capacidade hermenêutica sentiu-se desafiada por aquele enigma suburbano.
Pondo em prática o método desconstrutivo, comecei por separar o texto em pedaços conhecidos e desconhecidos. Meus parcos conhecimentos de inglês permitiram deduzir que o termo mega-hair devia se referir a uma cabeleira farta, daquelas dos rastafaris ou das louras adventícias.

Hora marcada, por sua vez, não deveria designar nada de novo além daquele velho procedimento há muito erradicado dos consultórios médicos. Restaram apenas, portanto, o nó italiano e a queratina.

Houve um tempo em que os italianos eram desbravadores de mares, tal como Colombo e Vespuci. Quem sabe o tal nó italiano era alguma espécie de nó de marinheiro? Quanto à queratina, o dicionário não ajuda muito. Remete a ceratina, que vem a ser “uma proteína fibrosa e pouco hidrossolúvel, comum na epiderme, constituinte principal do cabelo, unhas, pêlos, tecidos córneos... etc.”

De quase nada adiantou recorrer às mulheres da casa, pois são pouco dadas a salões de beleza, contentando-se com um ritual semanal de manicure ali mesmo no terraço. Aproveitei um desses momentos para me livrar definitivamente do meu analfabetismo capilar. Mira, a moça das tesouras e alicates, não soube dizer muito bem do que se tratava. Nem mesmo um telefonema para o próprio salão de beleza esclareceu muita coisa. Soubemos apenas que a coisa era cara. Cento e cinqüenta reais apenas o nó italiano e duzentos com a aplicação da queratina. O preço dos cabelos a ser implantados não estava incluído.

Saí do terraço chateado. O enigma continuava praticamente intacto. Entrei no escritório, liguei o computador e acessei o google. Foi só escrever “megahair nó italiano queratina”, e pronto. Todo o mistério do mundo estava resolvido em poucos segundos. Não vale nem a pena contar o que é. Quem quiser que vá lá ver.

14 junho 2009

Janelas de apartamento


Podem me acusar de voyeurismo, mas tem uma coisa que gosto muito de fazer: olhar janela de apartamento. Gosto de imaginar a vida daquelas pessoas, pensar como foi ou será o seu dia, o que estão comendo à mesa, o que conversam no terraço.
Em frente a um hotel em que me hospedava com frequência, tinha um prédio de pequenos apartamentos, desses de quarto e sala. Bem em frente ao meu quarto, morava uma mulher que não parava quieta. Ia da sala para o quarto, voltava, perdia-se lá por dentro para aparecer de novo, como um bicho na jaula. E minha curiosidade turbinava, pois eu só conseguia vê-la da cintura pra baixo. Tinha pena dela, mesmo sem nunca saber quem era.

Para mim, a melhor hora de espiar apartamentos é no finzinho da tarde. Me dá uma melancolia, uma vontade de ir esperar as pessoas que vão chegar do trabalho ou da escola, perguntar como foi o dia, ver quem chega com o pão para o jantar. Também gostaria de chegar de repente na porta dos que moram sozinhos, tocar a campainha e entrar para uma visita rápida. Talvez ficando para um café.

Se quiserem ainda me acusar de voyeur, saibam que estou muito bem acompanhado neste vício. Vejam, por exemplo, a letra da música abaixo, de autoria de Renato Rocha, cantada pelo MPB-4. É uma coisa linda. Assim que conseguir baixar a melodia, vou querer repartir aqui com vocês.


Janela de Apartamento

Homem entrando calorento afrouxando o colarinho
A mulher vem lá de dentro: um abraço um beijinho.
Janela de apartamento parece estória em quadrinhos

Lá naquela um cachorrinho, acho que fica sozinho,
a maior parte do tempo
Do lado mora um velhinho que nunca recebe gente
Acho que vive somente pra cuidar dos passarinhos.

O jantar está saindo ali, naquele do centro.
Todos comendo assistindo a novela do momento.
Em cima do cachorinho vagou um a pouco tempo.
Ali morava um brotinho que pra todos os vizinhos
era um acontecimento.
Saudades daquele tempo, aluga-se apartamento.

O homem do colarinho foi na janela um momento.
A mulher foi lá pra dentro, o casal tem um filhinho.
E o velhote sonolento, que dorme com os passarinhos,
fecha a cortina um pouquinho, tira a gaiola do vento,
apaga a luz do aposento.
Janela de apartamento parece estória em quadrinhos.


Ilustração: Óleo de Jean François Millet

Luvas



Não se pode chamar de perversão. Nem chega mesmo a ser um vício. O que André tem pode ser chamado de costume. André tem o costume de usar luvas.
Não é sempre, nem é em todo lugar. Tampouco é sempre a mesma luva. André tem uma luva para cada ocasião.
Quando Ana Beatriz viu André pela primeira vez, ele tomava sorvete de coco com luvas brancas. Ficou fascinada com a maneira elegante e precisa com que ele segurava a taça, manuseava a colher. Mas logo lhe bateu uma espécie de remorso. E se ele tivesse alguma doença de pele, coitado. Afastou-se olhando sorrateira para André e aquelas luvas não saíram de sua cabeça por uma semana.
Uma semana foi o tempo que Ana Beatriz levou para reencontrar André sozinho numa mesa de bar. Dessa vez ele usava luvas amarelas e tomava cerveja. Os olhares dos dois se cruzaram e ela não teve forças para recusar o convite de André para sentar.
Era atração, mas era muito mais curiosidade sobre as luvas que arrastaram Ana Beatriz à mesa. Sentou já com os olhos fixos nas mãos do rapaz. Ele notou e logo cuidou de explicar. Tinha essa mania. Usava luvas da cor mais próxima do que iria comer ou beber. Nada demais. Um amigo psicanalista garantira não ser doença.
A conversa mudou de rumo, pulou de André para a moça, seus gostos, suas manias, sua vida mais íntima, seu estado civil. Viúva. Ana Beatriz era viúva há quase um ano. Desde esse tempo, nenhum homem tocara seu corpo. Mas de um jeito meio confuso, insinuou que já era tempo de aliviar o luto fechado.
Não tinha lugar mais seguro do que o apartamento de André. Prédio pequeno, sem porteiro, vizinhança calma que se recolhe cedo. Ana Beatriz subia as escadas lentamente, a mão esquerda enlaçada com força à luva de André.
Ela esperou um tempo no sofá da sala enquanto ele dava um jeito rápido no quarto. Depois ele veio apanhá-la com as mãos descalças, deslizando com ela pelo corredor. Sentados na beira da cama, hesitantes sobre o que fazer, a moça sussurra meio rouca: vai com calma, André. Lembre-se que sou viúva. O rapaz então se levantou, levou um pouco tempo mexendo na porta do meio do guarda-roupa e virou-se mostrando as mãos. Beatriz saiu correndo do quarto quando viu as mãos de André vestidas com luvas de renda negra, um curto babado à altura dos punhos abotoados com pequenas pérolas.

Clube do Conto da Parahyba

07 junho 2009

O trabalho da alma



A alma mora no fundo do corpo. Neste sentido, ela é muito mais misteriosa do que a alma das religiões ou dos medos noturnos das crianças.
Parte da memória de tudo o que nos entra pelos olhos, pela boca, pele, ventas e ouvidos, permanece num canto obscuro do ser, reduzida a enigmas que se movem desordenadamente, apelando para voltar ao sentido que perderam ao penetrar no nosso corpo.
Situada numa região de fronteira entre o corpo e a linguagem, a alma é a operária que dá sentido aos nossos afetos. É o local onde se dá a superação que nos tira da confusão e nos lança no terreno da solidariedade. Pelo trabalho da alma, tudo o que nos invade pelos sentidos é devolvido ao mundo como linguagem.
Vista assim, a alma é o que nos torna humanos, fabricando a linguagem e nos dando a possibilidade de comunicação. Daí, a sua imortalidade. Pois a linguagem antecede a nossa entrada no mundo. E quando desaparecemos, algo do que transformamos em linguagem irá habitar como enigma o terreno obscuro dos afetos dos nossos descendentes, exigindo de suas almas a continuidade do eterno trabalho de nossa transformação em nós mesmos.

Ilustração: Óleo sobre tela de Carlos Godinho
Obtida em: www.galeriaaberta.com