30 março 2010

A Páscoa dos inocentes



Neste momento, em diversos lugares do mundo, milhares de crianças estão sendo molestadas por adultos. Em muitos lugares do mundo, estas crianças estão sendo sexualmente molestadas por padres católicos.
Se a pedofilia se alastra como uma epidemia em todo o mundo, é no seio da igreja católica que ela mais se destaca, pois os criminosos são presumidamente pessoas responsáveis pela propagação da ética e da espiritualidade entre aqueles que confiam em seu amor pastoral. Dizendo-se pastores de almas, é o corpo dos pequenos fiéis que eles cobiçam.
O número dos crimes é alarmante. Só para termos uma noção do nível de crueldade, basta citar um caso dos Estados Unidos, em que o padre Lawrence Murphy, que morreu em 1998, é suspeito de ter abusado de até 200 meninos em uma escola para surdos entre 1950 e 1974.
Na Alemanha, país natal do Papa Bento XVI, 18 das 27 dioceses estão sendo investigadas. Desde o início de 2010, pelo menos 300 pessoas acusaram padres católicos da Alemanha de abuso sexual ou físico. Entre as acusações, está o abuso de mais de 170 crianças por padres em escolas jesuítas, além de casos dentro de um coral de meninos dirigido durante 30 anos pelo monsenhor Georg Ratzinger, irmão do papa.
E o que diz o papa disto tudo? Em sua homilia do Domingo de Ramos, disse que Deus guiará os fiéis “no caminho da coragem que precisamos para não nos deixarmos intimidar pela fofoquinhas da opinião dominante...” É isto, pois, o que o papa pensa de tudo isto: somos fofoqueiros que nos metemos em assuntos internos da sua igreja.
É Páscoa, minha gente. Para os católicos, um tempo de renovação e renascimento. Para muitas crianças formadas nessa fé, será um tempo de vergonha e sofrimento. E somente a justiça secular poderá reparar os danos decorrentes da ação criminosa dos seus agressores. Mas não haverá justiça, deste ou de outro mundo, que possa reparar os danos da inocência perdida.
Ilustração: Ziraldo

24 março 2010

Ponto para a barbárie

O shopping e a favela. Contraste e confronto

Três assaltantes invadiram uma casa no bairro de Manaíra, em João Pessoa, onde havia uma festa. Aproveitando-se de um descuido, as pessoas da casa desarmaram um dos homens e começaram a bater nos três. Um deles conseguiu fugir, outro foi entregue à polícia bastante ferido e o terceiro morreu de tanto apanhar. Uma cena de barbárie cada vez mais comum nas cidades brasileiras.

Há muito tempo sabemos que para a humanidade só existem duas opções: socialismo ou barbárie. Sabemos também que o socialismo é o nome político da solidariedade. A principal dificuldade em fazermos a opção pelo socialismo é que a solidariedade não é um atributo natural do homem. A partir dos laços familiares mais estreitos, o nosso instinto gregário vai se alargando em forma de círculo até um limite que varia segundo certas circunstâncias sociais. A fronteira pode estar na casa vizinha, no outro bairro, em outra cidade, outro estado ou país. O limite também pode estar na diferença de etnias, cor da pele, escolhas religiosas ou sexuais. Cada um de nós tem um limite para além do qual nossa solidariedade não avança. O limite mais resistente, porém, está entre as classes sociais.
O que aconteceu em Manaíra foi apenas mais uma manifestação dessa luta entre as classes que muita gente, não sei com quais fundamentos, acredita ter sido abolida. O bairro de Manaíra é, todo ele, um monumento à luta de classes. Basta ver o contraste entre a monumentalidade do Shopping e a degradação urbana do Bairro São José. Não é de espantar que as pessoas segregadas em seu gueto à beira do mangue descarreguem seu ódio naqueles que mais parecem com os representantes da classe antagônica. Estão apenas obtendo pela força os bens impossíveis de obter graças à omissão histórica do Estado.
Não é de espantar, também, que a classe média de Manaíra reaja à ação dos marginais oriundos do gueto que entrem em suas casas e ameacem suas vidas. Estão apenas defendendo suas integridades corporais e patrimoniais que cabe ao Estado proteger.
Só um estado forte e generoso pode garantir a igualdade de condições para que todos os cidadãos possam usufruir de uma vida digna. Quando o Estado falha neste papel primordial, perde-se toda a racionalidade que poderia levar a um comportamento solidário entre as classes. Cria-se o terreno fértil para o recrudescimento da barbárie, esta erva daninha que não precisa de nenhum cultivo para se alastrar.

Foto: Oriel Farias





16 março 2010

Excessivamente humano


A marca do humano é o excesso. Se você discorda, olhe em sua volta. Essas pessoas todas que passam correndo, a pé, de carro, ou espremidas em ônibus desgovernados, correm para o nada, movidas por uma sensação inexplicável de pressa e de perda iminente.

Mas não precisa olhar para tão longe. Veja as coisas que lhe rodeiam no seu dia-a-dia. Esse monte de livros, essa pilha de CDs, esses papéis velhos entulhados nas estantes que você nunca irá reler. Seus sapatos surrados, essas meias velhas, aquelas camisas desbotadas, as calças fora de moda abarrotando o guarda-roupas, quando você vai usar de novo? No entanto essas coisas ficam ali, ocupando espaço e tempo, restos insepultos da sua vida que delas nunca mais se servirá.

Quer um outro exemplo do excesso? Veja uma família festejando a classificação no vestibular de um dos seus rebentos. Nada, nem a qualidade da faculdade, a seriedade do curso, a futura carreira profissional, nada mesmo justifica aquela euforia somente mantida às custas de muita cerveja. Outro exemplo? Chegue perto de um apaixonado. Ouça o que ele tem a dizer a respeito do objeto de sua paixão e depois vá conferir essas qualidades com o dito objeto. Mais ainda: assista este mesmo apaixonado quando se transformar num desiludido do amor. Ele vai morrer, ele vai matar, ele vai largar tudo pra ser monge no Nepal.

Agora, se quiser uma prova mais fidedigna do excesso humano, olhe um pouco para dentro de você. Conte as vezes por dia em que sua garganta aperta, sua respiração se encurta, seu coração se acelera. Procure os motivos para tudo isso e você verá que as mínimas coisas são capazes de nos tirar do sério. E aqueles pensamentos terríveis causados pelo mais mínimo atraso da pessoa amada? E aquela sensação de angústia que não conseguimos encontrar a causa?

Pois é. Nós somos seres excessivos. E toda essa forma ruidosa de ser serve apenas para nos mostrar o quanto somos mínimos em nosso egoísmo.


Ilustração: Multidão 2, Pedro Charters

09 março 2010

Solidão e morte

Fazia três anos que o velho senhor não pagava o condomínio de um pequeno prédio em Asnières, na periferia de Paris, onde morava só, em um pequeno apartamento. Coisa estranha, pois era um bom pagador, indo pessoalmente todo mês ao escritório do síndico honrar o seu débito. Depois de não receber resposta a nenhuma carta de cobrança, o síndico percorreu a vizinhança em busca de informações sobre o septuagenário. Ninguém o tinha visto há um bom tempo. Impedido de violar as áreas privadas do prédio, o síndico recorreu a um especialista em genealogia para localizar a família do desaparecido. Existia, sim, um irmão, mas esta também não via o velho homem há muito tempo. Acionada, a polícia arromba o apartamento e encontra o cadáver do morador em total estado de decomposição.
Este é apenas mais um caso de pessoas que morrem sozinhas sem que ninguém dê por sua falta. O fato é comum, principalmente em cidades da Europa. Durante a onda de calor que em 2003, só na França, matou mais de 13 mil pessoas, a grande maioria de idosos, mais de mil famílias não se apresentaram para recuperar o corpo de seus parentes. Foi preciso a intervenção do governo para que algumas centenas de familiares assumissem o enterro de seus mortos.
A morte solitária e anônima é um dos sintomas mais graves do comportamento individualista a que somos incentivados pela economia neoliberal. A luta fraticida pelos recursos escassos faz com que esqueçamos os nossos laços sociais. Amigos, parentes, vizinhos, conterrâneos, toda e qualquer categoria que antes nos animava à convivência afetuosa ou apenas cordial, são agora uma ameaça à nossa sobrevivência. Tornaram-se estrangeiros ao círculo mínimo do meu mínimo eu.
Daí que cada vez mais vamos envelhecer sozinhos. E quanto mais nos isolarmos em nosso individualismo, maior será nossa chance de sermos encontrados mortos em nossos cubículos, sem que ninguém dê por nossa falta.


Ilustração: Fábio Cavalcanti

04 março 2010

A outra de mim


Tenho muito medo da mulher. De seus abismos, do seu silêncio. E nem era pra ter. Fui criado por minha mãe e duas tias, com duas irmãs de lambuja. Devia, pois, desde o berço, estar acostumado ao modo de ser feminino. Com suas sombras, com seus segredos. Devia estar, mas não estou. E quanto mais vivo, mais me assombro com seus mistérios, com seus bruxedos.


Tenho mulher e duas filhas, uma nora, três netas e várias sobrinhas. Tenho muitas amigas. Minha casa é impregnada pela alma feminina. Passei décadas da minha vida ensinando a classes formadas por grande maioria feminina. Oitenta por cento de minha clientela também é formada por mulheres. Já era tempo, vocês hão de pensar, de não mais me espantar com o feminino. Mas isso, no meu fraco entender, é impossível.


Não depende da idade nem de qualquer atributo físico. A mulher, toda mulher, traz consigo um quinhão de estranheza que resiste a qualquer tentativa de tradução. Inclusive por elas mesmas. É esta face obscura, que nos olha do outro lado da fronteira de um país estrangeiro, que nos lança o desafio permanente da decifração. Com a decorrente ameaça de devoramento, é claro.

Desde menino guardo a imagem dessas alegres esfinges, em cochichos, rabos de olhos, meneios de cabeça, finalizados pela risada cabulosa que me tinha por alvo. Pobres de nós, os meninos, indefesos, encabulados, batendo em retirada para longe daquele exercício incipiente do maldoso mistério a que ficamos a mercê pelo resto da vida.

Com uma porção tão grande de estranheza, dá pra entender porque a mulher é alvo de tanta violência. Poucas pessoas suportam conviver com a diferença. Principalmente com essa diferença radical que o feminino representa.

Eu, que tenho por fardo a obviedade masculina, sou grato àquela que me põe cotidianamente em frente ao seu mistério. Essa outra de mim, que me ensina a conviver com meus abismos, com meus escuros.
Ilustração: Gustav Klint.