26 maio 2010

Ração humana






Já não bastava terem transformado nossa alimentação num problema médico. Agora, ela está sendo tratada como um assunto veterinário. Sim, pois desde que me entendo de gente, ração sempre foi uma coisa a ser dada aos animais. Já deu a ração do gado?, pergunta o dono ao vaqueiro. Já botou a ração do cachorro?, pergunta a mãe para o filho.
Confesso que me assustei quando vi pela primeira vez uma referência à ração humana. A primeira imagem que me veio à cabeça foi um homem nu, de quatro, atacando sofregamente uma tigela na área de serviço de um apartamento.
Sei que muita gente não presta mais atenção ao sabor daquilo que come. Qualquer coisa serve, desde que lhes encha o bucho e os mantenha em pé até o fim do dia. Tem a galera da coxinha com refrigerante e a turma da granola com linhaça dourada. Sem contar com os vegetarianos de carteirinha e os bons e velhos macrobióticos que ainda sobrevivem por aí. Talvez essas tribos não ofereçam resistência à tal ração humana.
Felizmente, ainda tem gente, como eu, que permanece adepta de uma boa refeição. Mesmo que se pegue leve durante a semana, com uns grelhados sóbrios, modestas saladas e pouca carne vermelha, a mesa toma outras cores entre o jantar da sexta e o almoço do domingo.
Nesse intervalo vale umas massas, peixadas ao coco, filés ao molho madeira, feijoadas, favadas, siris, caranguejos e muito camarão. Sem falar nos mais diversos acompanhamentos líquidos, que devem ir do aperitivo ao digestivo sem queimar nenhuma estação.
Desde o jantar íntimo das sextas, até as ruidosas mesas dos sábados, são os pratos feitos com amor e arte que promovem a confraternização entre nós, os comensais.
É certo que a língua não perdoa e já chamou nossa comida de repasto e antepasto. Mas ainda assim, pastar é comer livremente, provando aqui e ali dos vários capins, como os bois e os carneiros. Comer ração é se alimentar insossa e apressadamente, como os cachorros neuróticos dos apartamentos.

20 maio 2010

Fim de maio. Fim de mundo


Estou cada vez mais convencido de que o mundo vai acabar. Pode nem ser em 2012, mas que vai acabar, isso vai. Já estamos quase no fim de maio e o tempo ainda não refrescou.
Maio, como todo mundo sabe, é o mês das flores, precedido pelas apressadas rosas de abril, do Caymmi. Isto quer dizer que, por esta época do ano, o tempo deveria estar fresco, caminhando para o friozinho de junho. Daí, não deveria faltar flores para os altares de Nossa Senhora e os buquês do dia das mães.

Mas andaram soltando umas bombas, queimando umas matas, liberando uns gases, fazendo umas fumaças e o tempo foi mudando aos poucos. Até que, de repente, nos apercebemos que já é fim de maio e não temos flores.

E se fosse só a falta de flores, a gente dava um jeito, mandando vir algumas toneladas delas made in china. O problema é que chove onde devia fazer sol, torra o sol onde devia estar chovendo. Morre gado de calor no Nepal, pega-se peixe com a mão nas ruas das cidades de Santa Catarina. Na Europa, morre-se aos milhares de frio no inverno e morre-se de calor, também aos milhares, no verão.

Não sou nenhum especialista em ecologia para falar com conhecimento de causa sobre as mudanças climáticas. Mas tenho o mal costume de prestar atenção nas coisas. Estive no fim de abril em São Paulo e fui preparado para enfrentar as quedas bruscas de temperatura que costumam pegar de surpresa até os mais ferrenhos paulistanos. Pois durante os dez dias que fiquei por lá, fez um calor patoense. A vantagem é que descobri que os paulistanos, principalmente as paulistanas, tem pescoços, ombros, colos, costas, pernas, como todos nós daqui.
Voltando a maio e às flores, ainda restam uns bons dez dias. Pode ser que até lá caia uma chuva boa, suba um cheiro bom de terra molhada e brote pelos cantos algumas flores. Precisamos delas, como Noé precisou do ramo de oliveira no bico do pássaro. Como um signo, uma promessa que ainda não será desta vez. Que talvez consigamos ir além de 2012. Que talvez consigamos criar juízo e cuidar deste planeta que teve o azar de acolher a espécie mais louca de todas que possam existir no universo.

16 maio 2010

Certas coisas



Cada vez mais tendo a crer que as coisas têm vida própria. Certas coisas aparecem e desaparecem de nossas vidas sem que saibamos de onde vem nem para onde vão. Não estou falando das canetas bic, pois já se sabe que estas são sondas enviadas por extra-terrestres para bisbilhotar nossas vidas. Falo de coisas esquisitas, que temos certeza de que não gastaríamos um tostão para comprá-las. De repente, elas aparecem em nossa mesa de trabalho, na mesa de cabeceira ou dentro da gaveta dos talheres.
Agora mesmo estou de frente para uma coisa esquisita, que não tenho a menor suspeita de quando a comprei ou ganhei. Ela chama-se Microtape e supostamente é fabricada pela Tipp-Ex. Tem um formato pouco anatômico e uma cor azulada meio repugnante. Intrigado pela sua presença em minha mesa, abri sua tampa de plástico fosco e me deparei com uma espécie de cabeçote do qual saíam duas fitas (o que justifica o nome Microtape), uma branca e outra transparente. Nenhuma das duas era adesiva.
Passei a me sentir na obrigação de encontrar alguma utilidade para tal buginganga. Nestes tempos de exaustão dos recursos planetários, deve-se pensar muitas vezes antes de jogar alguma coisa fora. Para alguma coisa a coisa haveria de servir.
Não consegui inventar nenhum uso para ela. Talvez, em caso de necessidade, sirva para amarrar o cabelo de uma de minhas netas. Ou estancar pequenas hemorragias. Ou, ainda, amarrar os caules das flores para que se armem em buquê. Pelo menos para uma coisa me serviu o encontro inusitado com esta coisa. Estava sem assunto para a crônica e ela piscou para mim lá do canto da mesa. Eis para que servem certas coisas.

05 maio 2010

Os poetas da lua


Toda criança nasce poeta. Para os seus olhos, tudo é espanto, novidade. Sua leitura do mundo ainda não foi domada pela sintaxe careta da linguagem usada como moeda de troca. As circunstâncias é que podem embotar esse modo novo de ver o mundo.

Felizmente, minha neta ainda não foi treinada a pensar que não se pode pegar a lua com as mãos e dar de presente à sua mãe. Mais felizmente ainda, ela não está sozinha neste modo de apreender o mundo. Algumas mães, minhas amigas, vieram me contar como o pensamente poético também habita a alma de seus filhos.

Teresa Madeira me conta que sua filha Raquel, “quando era pequenininha, na rede da varanda da casa do Bessa, fez uma canção pra Lua que dizia assim: ‘A lua é tão grande, tão barrigudinha, a lua só vive no colo da nuvem’.”

Vitória Lima diz que não esquece “ a noite em que passeava numa praça de Maceió com meu filho e ele, se dando conta da lua nova, gritou surpreso: ‘Olha mãe, a lua rasgada no céu!’ As crianças são poetas naturais que elaboram metáforas e metonímias sem terem consciência desses processos complicados dos poetas. Para eles, tudo é poesia”, arremata Vitória, que também é poeta.


Valéria Tarelho me manda um conto escrito em 2003, após seus filho Álvaro “se espantar com a lua faltando um pedaço e falar que ‘tudo bem, quando o vovô chegar ele pega a cola e conserta’."

Cada um de nós carrega ainda esse antigo poeta que fomos um dia. É preciso apenas saber despertá-lo. E um bom começo é, de vez em quando, se despojar da sintaxe careta da linguagem e deixar que o mundo nos mostre novas conexões entre as coisas. A melhor forma de deixar isto acontecer é voltar a olhar para o céu nas noites de lua. Crescente, cheia ou minguante, a lua sempre encontrará um meio de nos causar espanto. Esse espanto, acredite, é pura poesia.


Ilustração: Veruschka Guerra