29 junho 2010

Os ambulantes do nada


Eles andam sem rumo, atolados na lama. Perambulam em volta e em meio ao nada. O nada em que se transformou tudo o que tinham de seu. Suas tralhas, suas casas, suas ruas, seu lugar. Alguns perderam seus filhos, seus parentes, seus bichos. Tudo em volta é perda. Uma perda úmida, lamacenta, fétida.
Treme a voz calejada de militares que viveram a miséria do Haiti. Lá, a terra tremeu. Aqui, a terra sangrou. Um sangue estranho, de cor barrenta, transbordou das veias dos rios espalhando o horror da hemorragia.
Santana do Mundaú, Muquém, Cortês, Branquinha. Nomes que antes lembravam lugares de origem de muitas vidas, transformaram-se em pontos de uma geografia pastosa e mortífera. Em Pernambuco e Alagoas, pelo menos 46 pessoas morreram. Isto sem contar os desaparecidos, cerca de 540, habitantes do limbo e da esperança.
São mais de cem mil desabrigados. Mais de cem mil ambulantes vagando entre o nada e a coisa nenhuma. Proibidos de ver o lugar, os viventes e as coisas que lhes pertenciam, os olhos retiram-se vasculhando o nada. Impedidos de pisar com segurança o chão firme em que habitavam, os pés marcham para lugar nenhum. Sem ter para onde ir nem onde ficar, as pessoas entram em suspensão. O olhar ausente denuncia a fuga do espírito daquele corpo sem rumo.
As caras são de desespero, de derrota frente à fatalidade, nem tanto imprevisível assim. Se prestarmos atenção às falas, às roupas e ao que restou nos entulhos encharcados, veremos que, em sua grande maioria, estes são os eternos flagelados de qualquer parte do mundo. Pobres, é o que eles são. Moravam nas beiradas dos rios, por não ter lugar mais seguro onde morar. É assim, na maioria dos desastres “naturais”. Cheias, secas, terremotos, maremotos, qualquer que seja o flagelo, são sempre eles, os pobres, que vemos perambular sobre os vastos campos do nada.

21 junho 2010

A permanência de um nome


“O escritor José Saramago morreu”. Foi esta a mensagem que minha nora mandou para o celular de uma das minhas filhas. Era preciso deixar bem claro qual Saramago estava morto. Para isto serviam as palavras “escritor” e “José” na mensagem. Para que não se pensasse que um outro Saramago tinha morrido. No caso, o meu cachorro, que procura honrar o nome que lhe dei, ganhando o mundo ao menor descuido com o portão.
Conto isto para mostrar o quanto o nome Saramago é íntimo da minha casa. Muitas vezes por dia é repetido, tantas vezes quantas o incorrigível vira-latas transgrida as regras da boa convivência entre as espécies.
Foi esta intimidade com o nome, reflexo da minha intimidade com os livros de Saramago, que levou algumas pessoas a ligar para mim, me consolando pela morte do escritor. Vã tentativa, pois ninguém se consola de tamanha perda.
Não temos mais o narrador insólito que nos mostrava as feridas eternas da desumanidade como se as víssemos pela primeira vez. Não temos mais quem amplifique no seu texto a voz tímida dos oprimidos de todos os tempos e lugares. Nem mais o olhar ao mesmo tempo irônico e benevolente sobre as nossas fraquezas e presunções.
Desamarra-se de vez a jangada de pedra. A rocha de consciência e compaixão deriva agora pelas águas do sem tempo. Ser pedra e flutuar. Duro e leve de uma só vez. Talvez seja esta a lição que ele quis nos transmitir. Era isto, talvez, que nos dizia o seu olhar mesclado de ironia e esperança.
“O escritor José Saramago morreu”, dizia a mensagem no celular da minha filha. Mas em minha casa, seu nome ainda será por muito tempo repetido. Toda vez que esse outro Saramago, honrando o nome que lhe dei, desafiar com ousadia as ordens e os limites que tentamos impor à sua liberdade de cão.

16 junho 2010

De copa em copa




Não são meus aniversários. São as copas do mundo que me dão a certeza de que estou ficando velho. Constato isto por conta de um fenômeno intrigante: a cada copa os jogadores vão ficando mais novos.
A primeira copa que guardo na memória foi a de 58, na Suécia. Tinha onze anos e era natural que meus olhos de menino vissem Gilmar, Nilton e Djalma Santos, Didi, Vavá e Zagalo como verdadeiros senhores de idade. Mesmo Pelé, com seus dezoito anos, era gente grande. Enorme, por sinal.
Na copa de 70, no México, eu já estava com meus 23 anos e a turma de Rivelino, Jairzinho, Gérson e Tostão já pareciam meus irmão mais velhos. Além disso, já não eram ídolos tão distantes como os de 58, que só sabíamos de seus feitos pelo rádio e nas fotos dos jornais. Agora já existia a televisão e eles jogavam praticamente dentro de nossas salas. Éramos íntimos.
Para não gastar muito o tempo do leitor, chego logo a esta copa de 2010. Olho para essa meninada cantando o hino nacional e não consigo ter confiança em nenhum deles. Uns fedelhos, mal saídos dos cueiros, não me oferecem a segurança dos velhos ídolos de 58. Aqueles, sim. Eram senhores idosos, que traziam na cara as marcas das lutas renhidas nos campeonatos estaduais. Sim, pois naquele tempo todo mundo vivia aqui mesmo, no Brasil. Você acompanhava a evolução deles toda semana no Canal 100, uma aula de transmissão esportiva que passava antes de cada filme nos cinemas dos bairros.
Elano e Maicon que me perdoem, mas eu esperava um pouco mais desta meninada. Seria bom que fizessem uma forcinha para não decepcionar a mim, que já tenho idade de ser pai de qualquer um deles. Afinal já estou na minha décima sexta copa e não sei como vou estar daqui a quatro anos.

08 junho 2010

Dia de quê?



Contam que um sexólogo, no fim de uma palestra, resolveu fazer uma rápida pesquisa entre a platéia e perguntou quem ali fazia sexo apenas uma vez por ano. Eu, eu, gritou feliz uma velhinho lá do fundo da sala. O sexólogo, intrigado, perguntou: mas como o senhor, que só faz sexo uma vez por ano, está tão feliz? Porque é hoje, respondeu o velhinho. É hoje.

Lembrei dessa história porque deu na televisão que um deputado federal, por não ter nada mais importante com que se preocupar, criou um projeto de lei propondo o dia nacional do sexo. Tal medida, acredita o genial autor da proposta, ajudaria a derrubar tabus, estimulando a discussão sobre as formas seguras e prazerosas de praticar o ato sexual. Como se um único dia do ano fosse suficiente para se derrubar toda a carga de preconceitos e ignorância que pesa sobre a mais elementar das práticas humanas.

Não sei quais as verdadeiras intenções do deputado, mas já imagino o que pode acontecer se tal data for instituída. Vai ter promoção em sex-shop, distribuição gratuita de camisinha, evangélicos furibundos anunciando o fim do mundo, campeonato de ficadas nos parques das cidades, overdoses de guaraná em pó, desabastecimento de viagra.

Aliás, eu sei quais as verdadeiras intenções do deputado. É aparecer na mídia, fazer de conta para os seus eleitores que está trabalhando, deixar patente a condição de otário de todos os cidadãos que pagamos o seu salário e todas as benesses que o cargo lhe propicia.

O que pode ser feito para coibir a ação de parlamentares que, em vez de honrarem o cargo que ocupam em nosso nome, desperdiçam tempo e dinheiro com propostas tão idiotas como a criação do dia do macarrão, da verdade, e da gratidão? Como se já não bastassem o dia do amigo, da sogra e da baiana do acarajé.

O que pode ser feito é uma mobilização nacional para se criar um projeto de lei que institua o dia da vergonha na cara. Pelo menos nesse dia, seria proibido a qualquer parlamentar tripudiar sobre a nossa cidadania. Para que o dia consagrado ao sexo possa ser curtido calmamente pelo velhinho da anedota lá de cima.

05 junho 2010

A força estranha


Em cuba, 150 jovens furaram o bloqueio dos agentes de segurança para assistir ao primeiro show do Los Aldeanos, cujos raps falam de questões sociais proibidas de ser discutidas em Cuba, como a prostituição, a desigualdade e a corrupção.

Em um templo budista de 400 anos, no centro de Tóquio, o monje Kansho Tagai mistura o rap com os sutras, versos que condensam os ensinamentos do budismo.

Se existe um ritmo universal, hoje, este ritmo é o rap. Não vou chamá-lo de música para não ferir os ouvidos mais delicados, já que o termo é a abreviatura de rhythm and poetry, ou seja, ritmo e poesia. A melodia fica por conta de cada um dos cantores que se viram para encaixar nos compassos os versos quilométricos que em sua grande maioria denunciam a violência na periferia das grandes cidades. No Brasil, ele serve para discutir os problemas das comunidades pobres e marginalizadas, dando voz e visibilidade àqueles que de outra forma estariam fadados ao esquecimento e à morte.

O rap surgiu na Jamaica, nos anos 60, de onde foi exportado para os bairros negros de Nova York. Aí juntou-se à street dance e ao grafite para formar a cultura hip-hop. Daí ganhou, literalmente, o mundo. E pelas últimas notícias que temos, a sua força encontra aliados das mais diversas ideologias.

Quem andou torcendo o nariz para o rap, vai ter que se acostumar com o este som rústico e essas letras quilométricas. Coisa de negro, como disse um deles. Coisa dos homens, acrescento eu, que procuram uma forma de expressão para essa angústia do desenraizamento. Coisa deste mundo, que só será salvo da extinção com o auxílio do ritmo, da poesia e um pouco de música, se possível.