31 outubro 2010

Caído do céu*




Acordou com o ronco do helicóptero, mas só abriu os olhos quando o pedaço de papel colorido pousou na sua cara. Tinha dormido entupido de cola e não entendia nada do que estava acontecendo. Só o cheiro da tinta no papel conseguiu chamar sua atenção. Viu a máquina metálica desaparecer do céu para as bandas do mar.
Só então afastou o papel da cara e notou as fotos coloridas dos monumentos. Não sabia ler, mas não importava. Bastava-se com a beleza daquelas formas esquisitas, lembrando coisas que já conhecia, mas cada uma mostrando uma novidade para seus olhos de menino. Duas daquelas, ele já conhecia. Mas só de passagem, quando zanzava em volta dos muros da universidade. Nunca tinha prestado atenção àqueles montes de ferro, um lembrando o diabo, outro parecendo um cavalo de brinquedo. Levantou-se e foi ver de novo os dois monumentos, mas desta vez demorando em cada linha, em cada curva, na textura do metal, na estranha harmonia do que primeiro parecia desarrumação.
Quis conhecer as outras peças mostradas pelas fotos. Perguntou aqui e ali e foi andando a pé para os giradores e praças onde as esculturas esperavam por seus olhos.
O dia já terminava quando ele viu os quatro pássaros dançando em roda na entrada do altiplano. Cimento, Eram de cimento, suas mãos informaram. E o menino se espantou com a possibilidade de uma coisa tão leve e tão bonita ser feita com a brutalidade do cimento.
Ia em direção à praia quando se lembrou que tinha passado o dia todo sem comer, mas também sem cheirar cola. E ficou intrigado com a falta de fome e de cansaço. Sentou-se na areia e ficou olhando o mar. Barriga vazia, mas os olhos cheios de uma coisa que talvez mais tarde ele soubesse se chamar poesia.

Foto: Ivan D'Paula


* Na última semana de campanha política, um helicóptero sobrevoou os bairros de João Pessoa despejando um chuva de panfletos com imagens de monumentos instalados em lugares públicos da cidade. Cada uma das obras era identificada com uma suposta entidade dos cultos afro-brasileiros, querendo fazer crer que um dos candidatos a governador, ex-prefeito da cidade, teria contraído obrigações com tais entidades com o intuito de ganhar as eleições.

26 outubro 2010

A féria





A aula de português se arrastava pela tarde, quando o professor ofertou a palavra férias como exemplo de substantivos que só se usam no plural, os esquisitos pluralia tantum. Resgatado da sonolência pelo que considerava um absurdo, discordei do professor, afirmando que existia a palavra féria. E dizia isso com a autoridade de um inveterado leitor de gibis, onde a coisa mais comum era um magote de bandidos invadir o saloon, limpar o caixa e depois sair atirando, sob os desmaios das dançarinas de can-can. “Eles levaram toda a féria da semana”, lamentava-se depois o dono do bar ao xerife que sempre chegava atrasado.


Mas professor é professor. Como toda autoridade que se preze, está sempre com a razão. Disse que eu estava falando besteira e continuou a desfilar sua sapiência, deixando-me entregue à abundante crueldade dos colegas.

Entrei em casa furioso e fui direto ao "Pequeno dicionário da língua portuguesa" que dormitava em cima do bufê, ao lado das palavras cruzadas do meu pai. E para lavar a minha alma, estava lá: Féria. Entre muitos significados, a singularíssima palavra queria dizer: “Em casa comercial, o dinheiro das vendas realizadas no dia, na semana, etc.”

Não fosse eu quem sou desde menino, me dobraria ao saber da autoridade, aceitaria a zombaria da classe como lição de humildade e nunca mais poria as mãos num gibi, esse subvertor de sonolências catedráticas. Fui salvo pelo amor à verdade, à minha verdade, pela obstinação em defendê-la, mesmo que para isso tenha de recorrer a uma arma tão plebéia como a palavra impressa num gibi.

Desse amor à verdade, deriva o meu amor às palavras. Um dia, um poeta cubano dizia numa conferência que não existiam palavras feias. Todas as palavras eram belas, afirmava, e pedia a confirmação d platéia. Discordei, dando como prova a palavra bochecha, que é uma palavra feia, por mais rosada e diáfana que seja a coisa por ela nomeada. Não sei se tinha razão, mas não importa. Feias ou bonitas, amo as palavras pelo muito que me servem de veículo em busca da verdade.

Sou um trabalhador da palavra, vivo delas, tiro delas meu sustento. Falando, escrevendo ou escutando, é das palavras, feias ou bonitas, que faço minha féria. Essa féria, também ela, convenhamos, palavra tão feinha, mas tão generosa que me salvou da mediocridade nos tempos de ginásio. E que me salva outra vez, agora, ao permitir que, divagando em torno dela, tenha cumprido o compromisso desta crônica.

Acabou




Até que enfim, acabou. Chega ao fim a mais infame campanha política que já testemunhei em toda minha quase longa vida. Já não aguentava mais o Serra com seu Paulo Preto e a Dilma com sua Erenice, ambos enrolados em piruetas verbais para se descontaminar da proximidade insalubre dos velhos companheiros de jornada. Já não aguentava as injúrias sem fundamento lançadas pelos candidatos estaduais contra aliados de anteontem.
Basta. Acabou. Sigam, os vitoriosos, para o inferno climatizado dos gabinetes ornados de mármore e cristal. Voltem, os derrotados, para o purgatório de suas varandas, lambendo as feridas enquanto esperam alguma nesga de poder proporcional ao número de votos obtidos.
Vitoriosos ou derrotados, saiam, por favor, da minha frente. Não agüento mais a gritaria, os sorrisos forçados, os abraços ruidosos, os dentes arreganhados do lobo por trás da máscara de cordeiro.
Quero de volta a normalidade dos crimes passionais, dos ajustes de conta do tráfico, dos acidentes naturais, da corrupção cotidiana que já não causa indignação, de tão banal.
Quero as ruas sem bandeiras, sem os entulhos dos santinhos jogados fora no rastro das carreatas. Quero de volta o lixo comum entulhado nas calçadas, os cruzamentos devolvidos aos mendigos, vendedores de bugigangas e limpadores de pára-brisas.
Fica, mais uma vez, o gosto amargo de que seremos nós, os eleitores, que pagaremos a conta alta dos gastos de vencedores e vencidos. Fica, mais uma vez, a certeza de que seremos solenemente esquecidos em nossos anseios de cidadania, até que chegue a próxima temporada de iniqüidades.
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22 outubro 2010

Sacristão ou diácono?




Sempre achei que esta eleição fosse para Presidente da República e, aqui na terrinha, para Governador do Estado. Por isso, esperava que a propaganda dos candidatos priorizasse os temas ligados às políticas públicas necessárias ao bem-estar do nosso povo e à estabilidade econômica do País. Mas pelo nível e pela qualidade dos argumentos, tudo me faz parecer que estou sendo convocado para eleger o sacristão da de paróquia ou o diácono de um templo evangélico.

Nunca antes na história deste País fui tão bombardeado por mensagens do mais baixo nível fundamentalista. Nunca o demônio foi tão veementemente convocado como cabo eleitoral. Nunca vi candidatos com tanto medo de arder no fogo do inferno. Ou de perder o voto dos eleitores que se deixam enganar pelo discurso dos pseudo-fundamentalistas.

A grande vedete da discussão, a nível nacional, é a questão da legalização do aborto. Ambos os candidatos estão na maior saia justa, pois, como pessoas esclarecidas que são, em algum momento de suas vidas devem ter se declarado a favor do aborto assistido. É divertido ver as piruetas verbais que são obrigados a fazer para desmentir suas antigas posições.

Os candidatos prestariam um imenso serviço à nação se declarassem que a legalização do aborto é uma questão de saúde pública. Contra o argumento farisaico da defesa da vida, basta mostrar as estatísticas das mulheres que morrem ao se submeter ao trabalho dos clássicos fazedores de anjos, bastante conhecidos e freqüentados por muitos dos fundamentalistas quando querem se livrar da aporrinhação de um filho fora do casamento.

Quanto à baixaria a nível estadual, não me espantaria se o próprio diabo saísse vitorioso no segundo turno, tanta é a gritaria em torno do seu nome. Parece que os próprios candidatos esqueceram que o Estado é laico. Da forma como seus estrategistas de campanha dão ênfase à pureza de suas convicções religiosas e atacam as supostas ligações do adversário com o capeta, parece que a eleição é para algum cargo de prestígio duvidoso na igreja da esquina.

Por mais que o Serra se pareça com Dom Helder, não confio nele para administrar o apurado das esmolas da paróquia. E Dilma não me convence que saiba o menor versículo da Bíblia de cor. Portanto, parem de nos tratar como um rebanho de idiotas e mostrem seus verdadeiros programas de governo.

14 outubro 2010

O parto da terra


Um a um, a terra devolve à superfície os trinta e três mineiros que guardou no seu ventre por sessenta e oito dias. É impossível resistir ao poder simbólico do episódio que a mídia nos serve a domicílio.
Um a um, ficamos prisioneiros da tragédia que latejava no meio do deserto chileno. Todos nós ficamos grávidos destes homens que desceram aos infernos e ficaram prisioneiros de suas entranhas. De repente, fomos tomados por um medo atávico. O medo de ser enterrado vivo.
Era preciso resgatar aqueles homens. Não suportaríamos acompanhar a sua lenta agonia. Não suportaríamos, isto sim, a encenação da nossa própria angústia diante da ameaça da morte. Daí ter sido providencial a comunicação com os soterrados. Benditos celulares que nos trouxeram as vozes e depois as imagens da vida a quase setecentos metros de profundidade. Sofríamos, sim, mas estávamos vivos.
De repente, os técnicos se deram conta de que não existia um plano de resgate pronto para a situação. Tudo teve que ser improvisado. Existia, sim, uma tecnologia disponível, mas estava dispersa em diversos dispositivos de diferentes instituições. De repente, o mundo se dá conta de que o valor da vida dos mineiros, como a de qualquer outro trabalhador em qualquer lugar do mundo, é inferior ao das riquezas produzidas por suas mãos.
Diz a mídia que o trabalho nas minas não será mais o mesmo depois do acidente chileno. Não acredito. Daqui a pouco todos nós esqueceremos o sofrimento dos mineiros do deserto de Atacama, assim que uma catástrofe nova atrair os olhos da mídia. Mas enquanto isto não acontece, permanecem em nossos olhos as cenas comoventes desses trinta e três mineiros paridos pela terra. Esses que viveram mais de dois meses de inferno e de lá nos ensinaram o poder da solidariedade e da esperança.

05 outubro 2010

Resultado das eleições




Quem saiu às ruas na segunda-feira depois das eleições viu a primeira manifestação de falta de cuidado dos políticos com o bem público: as toneladas de lixo espalhadas pelas ruas, restos inúteis do material de campanha dos candidatos vitoriosos ou derrotados.

É fácil identificar, pela cor predominante nos monturos, qual foi o átila que passou por ali nos últimos momentos da campanha. Tanto faz. Todos eles tratam nossas ruas com o mesmo desrespeito. É apenas um aviso de como nos tratarão quando forem eleitos. E não poluem apenas nossos olhos. Violam nossos tímpanos com carros de som a todo volume, com suas mentiras viçosas e seus jingles de gosto duvidoso.

Mas a poluição maior, a violação mais patente, é a falta total de escrúpulos dos partidos na escolha dos candidatos mais aptos a abocanhar um fatia de poder. E não estou falando dos palhaços, das mulheres frutas, das celebridades da hora ou dos doadores de sopa. Falo dos fichas-sujas, dos velhacos, dos filhos diminutivos das velhas raposas.
Vamos ter segundo turno de votação para os cargos executivos aos níveis federal e estadual. Vamos ter que agüentar mais de vinte dias de uma disputa que dificilmente nos trará qualquer novidade. A não ser, é claro, uma baixaria mais cabeluda que possa jogar mais um pouco de lama no adversário. Seria bom que os nossos candidatos orientassem os seus partidários a respeitar os nossos olhos e ouvidos. E eles próprios respeitassem a nossa inteligência de eleitor.
Não é com bandeiras, santinhos e adesivos que se conquista um eleitor consciente. Deixem claro quais são suas propostas de governo. E deixem nossa cidade livre da sujeira e do barulho que apenas confundem a nossa capacidade de decidir com serenidade em quem devemos votar.

04 outubro 2010

Anti-sintaxe





Piedade pelo morto
que não sabe que vai morrer.
Ou não quer saber.

Vaidade do morto antecipado
que não se deixa ver
enquanto morre.
O morto não se quer feio.
O morto não se quer morto.

O morto antecipa-se à morte.
Encena a morte
Enquanto espera a cena.

Não vai ver.
Não vai estar.
Estar é ser.
E não será.

As últimas palavras
Rondam a memória que morre.
Estáticas. Anti-sintáticas.


Ronaldo Monte
04.10.2010

03 outubro 2010

Abismos e tropas


“O País está à beira do abismo”. Estas palavras podem não fazer o menor sentido para o pessoal mais novo, mas elas foram ouvidas à exaustão pela turma da minha geração. Ao menor vislumbre de avanço social, vinha um espertalhão bradar que estávamos rolando abismo abaixo. A contrapartida era a ameaça sinistra dos generais: “vamos botar a tropa nas ruas”. Maus tempos aqueles, em que a vontade popular valia menos do que um golpe de cassetete. Péssimos tempos, em que os tanques decidiam em lugar das urnas.
Não, não estou com nenhuma síndrome de pessimismo. Não há nada no horizonte que possa ameaçar o atual processo de consolidação da nossa democracia. Toco no assunto para lembrar a algumas pessoas que implicam com o atual processo democrático, que existe uma alternativa. Mas já a conhecemos e não a queremos de volta.
Se atualmente somos obrigados a suportar uma penca de candidatos de moral duvidosa, alguns, inclusive, juridicamente declarados imorais, somos os únicos responsáveis pela mudança deste cenário que nos dá voltas ao estômago. O voto, e somente o voto, é o instrumento que temos para fazer uma faxina nesse celeiro de fichas enodoadas.
O País afastou-se da beira do abismo. Mas isto não elimina o grande abismo que divide as nossas classes sociais. E ainda nos sobra o abismo moral que separa o nosso povo dos seus supostos representantes.
Ainda temos muito que fazer para enxotar de vez a metáfora do abismo do nosso vocabulário político e social. Basta, a cada eleição, botar a tropa nas ruas. Não aquela de antigamente, uniformizada e subserviente. Mas esta tropa colorida e ruidosa que sabe o poder do voto que tem nas mãos.