27 janeiro 2011

Savana




Para Robinson, Paty, Marina e Cacau

Entre um cliente e outro, eu dava uma chegadinha no terraço e eles estavam todos lá. Esparramados nas poltronas ou espichados no sofá, estavam lá, na vagabundagem, enquanto eu suava no tanque do consultório. Claro que eu reclamava, mas eles nem se mexiam. Para ser mais fiel ao espetáculo, deveria escrever “elas”, pois eram sete mulheres e só um homem, entre hóspedes e gente da casa.
Foi imediata a associação com a cena de uma savana africana num fim de tarde. Aquela hora em que ninguém come mais ninguém, reinando a paz entre presas e predadores.
Fiquei feliz ao ver o terraço da minha casa servir de savana para aquele bando de animais de olhares vagos e conversa arrastada. Todos eles mereciam aquela paz de começo de noite. Quatro deles, o homem, sua mulher e duas filhas, tinham vindo de São Paulo, depois de trabalhar muito, todos eles, em troca de alguns dias de sossego entre os amigos da Paraíba. As outras três, uma avó, uma filha e uma neta, faziam as honras da casa e tiravam proveito do clima de vagabundagem.
A mim, restava sentir inveja de não poder ficar ali, envolvido por aquele miasma benfazejo, deixando o corpo se entorpecer pelo afeto bom e silencioso que circulava entre as criaturas de modos bovinos ou felinos, segundo suas índoles.
O tempo se arrastava no consultório. Édipos, narcisismos, traumas infantis, tudo aquilo me parecia sem sentido. Tinha vontade de dizer a cada paciente que não valia a pena tanto sofrimento. Bastaria que fossem passar alguns minutos no terraço da minha casa. Veriam, então, que tudo o que procuram na vida poderia ser encontrado ali: a possibilidade de conviver em paz com seus semelhantes, como os bichos convivem nos fins de tarde nas savanas.

19 janeiro 2011

A alma da casa



Não pense que uma casa é um simples amontoado de tijolo, cimento e telha. Toda casa tem uma alma. E como toda alma, a alma da casa tem suas nuances, suas alegrias, seus azedumes. Cada vez que se entra em casa, ela nos recebe de um jeito diferente. Logo na porta da frente, você percebe se ela está contente com a sua chegada. Tem dias em que sentimos uma luz, um brilho diferente. A casa nos aconchega, nos acolhe com intimidade. Outros dias tem umas sombras, um não sei que de estranheza lá pelos fundos do corredor. A minha casa, pelo menos, é de veneta.
A casa de Cabedelo, que é meio minha, meio de minha filha, ficou inviável com uma reforma do sistema hidráulico. Faltou água. Por isso, vim passar uns poucos dias no Bairro dos Estados. A princípio, a casa da cidade pareceu alegre com minha chegada. Mas acho que ela andou escutando umas conversas de que voltaríamos para Cabedelo assim que a reforma ficasse pronta. Foi o suficiente para que o mau humor tomasse conta do domicílio. Começou a pingar água do split do quarto, molhando uma caixa de CDs. Vazou água na pia do banheiro social. Emperrou a porta do meu consultório. Queimou uma lâmpada na sala e outra no terraço.
Nada de grandes desastres, tudo podendo ser resolvido com um pouco de dinheiro e paciência. Mas para mim ficou patente que a casa estava com ciúmes. Ela é maior, mais antiga e confortável que a outra. Não deve suportar que a troquemos por uma simples casa de praia, com seus improvisos, seu desconforto, sua frivolidade.
Recomendo a quem tiver juízo que afaste-se de casa toda vez que precisar falar de algum dos seus defeitos ou fazer qualquer comparação com outra casa, seja sua ou de um amigo. Sobretudo, evite folhear dentro de casa aquelas revistas de decoração. Sua casa vai se sentir insultada e não se sabe o que uma casa ciumenta é capaz de fazer.

Foto obtida em http://blogartmariajose.blogspot.com/2010_05_01_archive.html

16 janeiro 2011

Estação da morte



É verão de novo. E por mais que poetas, cronistas e publicitários queiram nos mostrar as delícias do sol nas praias, lá vem a enxurrada de notícias estragando nossas férias. Rios que transbordam, encostas que deslizam, casebres que desabam. E mortes. Muitas mortes.
É verão de novo. E cá estamos nós, tentando salvar a nossa paz em meio ao horror dos desabrigados, ao desespero dos enlutados. Pobres, todos eles. Quando não perdem a vida, perdem tudo que a vida permitiu guardar.
É raro, muito raro, ver uma vítima desses desastres que não seja extremamente pobre. Pois só os pobres se sujeitam a morar nestes fins de mundo para onde são enxotados pela exploração imobiliária e pelo descaso das políticas públicas.
No ano passado, morreram uns poucos ricos em Angra dos Reis. Este ano, algumas mansões das serras do Rio foram ao chão pela força das águas. Mas se compararmos o número de mortos por classes sociais, veremos que os pobres ganham fácil este ranking de morbidez.
Pode parecer sarcástico, mas devemos esperar que aumente o número de vítimas nas classes média e rica para que alguma medida preventiva venha a ser tomada para controlar os efeitos desta calamidade sazonal.
É verão de novo. E mais uma vez temos que conviver com esta ambigüidade de sentimentos. Esperamos com ansiedade a estação que nos trará o sol, o mar e o tempo livre para o convívio amigável. Mas lá no fundo, tememos pela chagada deste mesmo tempo, pois sabemos que, para muitos, será novamente uma estação de sofrimento e morte.

05 janeiro 2011

Amigos




Uma amiga vivia insistindo para que eu entrasse no Facebook. De tanto ouvir suas loas às maravilhas de pertencer a essa rede social, cedi à tentação, mesmo sem saber o que queria dizer uma palavra supostamente tão fácil. “Livro de caras”, supus, e resolvi dar as caras por lá.
Logo de saída, a primeira surpresa. A minha amiga, uma das mais íntimas, veio pedir para ser minha amiga. Será que ela não estava segura da minha amizade? Ou seria a amizade no Facebook uma coisa muito séria, algo assim como uma irmandade secreta, uma maçonaria?
A primeira impressão evaporou à medida em que começou a chover pedidos de gente querendo ser meu amigo. Aí a ficha caiu e comecei a compreender que estava lidando com um outro conceito de amizade. Para ser amigo dessas pessoas, inclusive dos velhos amigos, basta clicar aceitando a amizade e pronto. Não precisa acontecer mais nada entre nós. Não ficamos sabendo onde essas pessoas moram, o que fazem, do que sofrem, a quem amam. Basta ver suas caras sorridentes e ficar feliz com o número crescente de amigos que pingam diariamente na sua página.
Não me sinto bem com essa banalização do conceito de amizade. Na vida real, um amigo é um privilégio que não se obtém com um simples pedido eletrônico. A amizade é um tipo particular de relação amorosa que deve ser conquistada com esforço. Para ser meu amigo, por exemplo, é preciso uma certa dose de masoquismo. Eu sou chato, irônico e mal-humorado. É preciso ralar para ter acesso às minhas parcas qualidades. Tem uma crosta resistente a ser atravessada até atingir o núcleo da minha ternura. São pouquíssimos os que têm paciência para chegar lá.
Pode ser que um dia eu me acostume a ser chamado de amigo pelo pessoal do Facebook. Mas vou logo avisando: não esperem nunca que eu vá aparecer de repente em suas casas exigindo que me sirvam uma refeição com um vinho lá do fundo da adega. Isso é um privilégio que reservo para meus poucos e verdadeiros amigos.