27 novembro 2012

Lembrança



Traga uma lembrancinha pra mim, ela pediu. Qualquer coisa simples que faça você lembrar de mim, ela falou, oferecendo a boca para a despedida. 

Ele entrou no ônibus sabendo o cansaço que o esperava. Ia para longe, alto sertão, mais de doze horas de viagem. Cidade perdida entre serras. Ia ser difícil encontrar alguma coisa para ela. 

O ônibus rolando pela estrada reta, hipnótica. O sol da tarde batendo de frente, ofuscando através do vidro fumê. Impossível dormir. O olhar compulsório não registrava nuances. Vastas planícies de vestes rasteiras e o horizonte de serras inalcançáveis. 

Saiu no começo do dia, chegou no começo da noite. Um resto de luz teimando no poente, um resto de calor que cedia à frieza. A pousada em penumbra. A noite revirada na cama. A manhã que custou a chegar. 

Com a manhã, os passarinhos. De onde vinham e para onde iriam tão logo o sol esquentasse? E as pessoas, onde estariam com suas vozes arrastadas e suas poucas respostas? E os bichos pequenos que não se mostravam, chispando entre as folhas ralas dos arbustos? 

Era muita luz para o pouco a ser iluminado. A palavra agreste armou-se em todo seu sentido. Luz demais sobre quase nada. E este era o desafio. Forçar os olhos a ver o que a luz escondia. Inventar sombras. Criar movimentos. 

Lembrança. Que lembrança levar para ela. Nada para comprar, nem pedir, nem achar. E estes olhos viciados aos contrastes chapados dos signos urbanos eram cegos para a beleza cantada pelos versos agrestes dos poetas. 

Lembrança. Era isto que tinha para dar a ela. A lembrança dela o tempo todo enfeitando a paisagem impenetrável. Ela mesma impedindo que a paisagem se abrisse aos seus olhos. Era ela, a lembrança dela que o impedia de encontrar alguma coisa que levasse de lembrança. 

Foi isso que ele deu a ela. A lembrança dela o tempo todo ofuscando a visão, saturando a memória. Foi isto o que tentou dizer ao mostrar as mãos vazias e as retinas fatigadas com a imagem dela.

Este conto faz parte do meu livro "O baú do anão" que será lançado na próxima quinta-feira, 
a partir da 19:30 h, no Terraço Brasil, na Praia de Cabo Branco, em João Pessoa. 

21 novembro 2012

Ao pó



Tu és pó e ao pó voltarás. Disse isto em frente ao espelho da penteadeira, já com a esponja de pó de arroz pronta para passar no rosto. Demorou-se um pouco com a mão suspensa, resignada com o tempo que se recusava a entrar também em suspensão. 
Quem disse que não se pode ver o tempo? Ela o via ali, em sua frente, refletido no espelho oval do móvel antigo. O tempo tinha a sua cara. Ali estava escrito o passar das horas, dias, anos, décadas de uma vida às vezes bem vivida. Ali também estavam os traços de outras vidas, herança confirmada pelos álbuns de fotografia. 
Olhava o tempo em sua frente sem remorsos. Tentou lutar contra ele e perdeu. Gastou fortunas com cremes milagrosos. Desperdiçou safras de pepino em rodelas. Paralisou-se com litros de botox. Chegou até pegar o número do cirurgião plástico. Mas não passou daí. 
Olhava agora de frente para o tempo. Até gostava um pouco do que via. Cada marca daquela era uma letra do poema que o tempo escrevera no seu rosto. Não queria apagá-lo, voltar a ser uma folha em branco. 
O que não precisava era que o poema fosse exposto nos mínimos detalhes aos transeuntes. Um pouco de mistério nunca fez mal a ninguém. E para isso tinha o bom e velho pó de arroz.lista de emails

Este conto faz parte do meu novo livro O baú do anão que será lançado na quinta-feira, 6 de dezembro, a partir das 19h30, no Terraço Brasil, praia de
Cabo branco, João `Pessoa - PB

12 novembro 2012

Desastre matinal




A manhã deslizava em paz, com sua luz, seus cheiros e sons de costume. O ronco do liquidificador anunciava o suco generoso que logo teríamos sobre a mesa. Do fogão, o pão assado mandava o seu recado: chegaria em breve, logo depois das frutas.  

         Como todo bom desastre, este não se anunciou. Explodiu de repente no chão da sala, cobrindo um largo espaço com uma mancha avermelhada. De uma forma inexplicável, o fundo da jarra separou-se do bojo num corte quase perfeito, deixando vazar num jato todo o suco que se espalhou sobre o piso.


         A partir daí, a manhã não foi mais a mesma. O inusitado quebrou sua previsibilidade, exigindo ações estranhas aos ritos matinais. Levantar da mesa, conferir o prejuízo, confortar a funcionária zelosa das suas qualidades em combinar as frutas dos sucos.  Depois, ficar matutando sobre os mistérios da vida, pois nunca se poderia imaginar que uma jarra de vidro tão forte pudesse nos faltar de forma tão abrupta num momento em que mais precisávamos dela.

         Nunca se sabe os rumos que pode tomar uma manhã. Tardes e noites também são imprevisíveis. Por mais que tenhamos cuidado para que o bonde ande em cima dos trilhos, pequenos descarrilamentos sempre podem alterar nossa rotina. Claro que não estou falando de grandes desastres, catástrofes climáticas, tsunamis econômicos, julgamentos do STF. Falo de pequenas coisas aterradoras, como a empregada faltar na segunda-feira, o gás acabar na hora de acender o forno para o jantar da sexta-feira, o parente chato avisar que vai chegar com a família para o feriadão.

         Mas é sempre reconfortante lembrar que há males que vêm para o bem. A falta da empregada pode fazer você achar aquele documento escondido nas dobras do sofá da sala. A falta de gás pode sugerir uma receita nova de salada. O parente chato pode ser um bom encanador e livrar você daquele eterno vazamento no banheiro. No caso da jarra quebrada, tive a grande vantagem de me livrar daquele gostinho de terra que sempre fica na boca depois de um copo de suco de beterraba.    

06 novembro 2012

Territórios sagrados



        

Numa entrevista do escritor Mia Couto, fico sabendo que nos idiomas nativos de Moçambique não existe uma tradução para a palavra futuro. Para os povos originários daquele país, o futuro é um território sagrado ao qual não se tem acesso. Comentando isto com Glória, minha mulher, ela lembrou que esta noção não é alheia à nossa cultura, pois é comum ouvirmos dizer que “o futuro a Deus pertence”, o que significa também que está fora do alcance dos desejos humanos.
         Não é à toa que os charlatões de todas as espécies se envolvem numa aura de mistério e misticismo quando querem ludibriar a boa fé daqueles que desejam saber o que lhes espera no futuro. Eles precisam causar a impressão de intimidade com o sagrado para dar credibilidade aos seus vaticínios.
Houve um tempo em que estava em moda a profissão de futurologista. Eram senhores pós-graduados nas melhores escolas de economia dos Estados Unidos que tinham por missão dizer aos sub-desenvolvidos que não existia salvação para nós fora da tutela norte-americana. Em vez de turbantes e bolas de cristal, usavam enormes computadores para nos dar a impressão de infalibilidade. Hoje, devem estar todos desempregados.
         Dando meia-volta em nossa conversa, podemos também dizer que o passado é também um território sagrado e inacessível. Não é à toa que uma deusa, Mnemosine, guarda as chaves da nossa memória. Os deuses sabem o quanto nos perturbaríamos se tivéssemos acesso a cada momento vivido. A perda da memória é uma benção divina. Não apenas selecionamos os momentos de nossas vidas que merecem ser lembrados. Somos capazes de criar lembranças que encubram aquelas que podem nos causar desprazer.
         Deixemos aos deuses esses dois lugares inacessíveis aos mortais e cuidemos da vida presente, sem mistificações, como queria Drummond. Consolemo-nos com os efêmeros momentos dos sonhos em que podemos vislumbrar as fronteiras desses territórios sagrados.