23 dezembro 2012

O velho mundo de sempre





Se você está lendo este texto, é porque o mundo não acabou no dia previsto pelos alarmistas de plantão. Quem torrou tudo o que tinha no cartão de crédito e no cheque especial, quem falou para o chefe tudo que estava engasgado desde a admissão no emprego, quem cantou a mulher do vizinho campeão de MMA, quem tomou um porre e soltou a franga, saiu do armário e rodou a baiana crente como o mundo ia mesmo acabar, deve estar se pondo a grande questão filosófica: como é que vou encarar essa mesmice?
Não adianta espernear. Este é o mundo que temos para hoje e desconfio que o teremos ainda por um bom tempo. Judeus e palestinos continuarão a se matar, todos cobertos de razão. A China continuará a nos entulhar de quinquilharias e reduzir nossos empregos a pó. A guerra e a aids vão continuar despovoando a África até o último africano. As primaveras democráticas continuarão sendo substituídas pelos invernos totalitários. Os ricos vão continuar ricos e os pobres vão continuar pobres. E neste imenso gigante sonolento continuará valendo o princípio da “farinha pouca, meu pirão primeiro”.
Felizmente, o mundo não acabou, pois as férias da moçada mal começaram e nestas margens do Atlântico estão acontecendo umas manhãs cinemascópicas. E se o mundo não se acabou, ainda dá tempo de telefonar para aquele amigo lá longe, mandar um e-mail para a parentalha, botando a casa à disposição. Dá para visitar aquela turma que a gente só encontra nos velórios dos amigos comuns. Dá pra conversar com aquele vizinho mal humorado que acorda você com o som nas alturas.
Em vez do fim do mundo, qualquer um pode curtir um fim de tarde com quem gosta. Pode sair no fim de semana para um lugar diferente com quem ama. Pode chegar no fim do mês liso, mas feliz. Pode viver os dias do fim do ano sem lutar contra o tempo, sem buzinar nos congestionamentos, sem brigar com a moça do caixa.
Melhor pra mim, que o mundo não tenha acabado. Fico pensando como ficaria eu sem o mundo. Sem o mar de Cabedelo, sem a ponta do Cabo Branco, sem a Serra da Borborema. Sem trabalho pra trabalhar, sem rede pra descansar, sem bebida pra beber.
Melhor pra todo mundo que o mundo não tenha acabado. Fica todo mundo vivo, não sai ninguém e vai todo mundo botar a patinha na consciência para ver as besteiras que anda fazendo para acelerar o fim do mundo.


Ilustração: Gustave Courbet "La Rencontre, ou Bonjour Monsieur Courbet"

17 dezembro 2012

Os bichos, a palha





Não importa se é mito, não importa se é fato. Crente ou descrente, nenhum membro da cultura ocidental pode ficar alheio à figura do Cristo. Principalmente às imagens estabelecidas como o princípio e o fim da sua vida terrena. Dispensemos, por hora, a imagem da solidão e do sofrimento do Calvário. Vamos ficar com a imagem da origem, aquela cena simples do menino deitado na palha, velado pelos bichos, sob os olhos dos pais. Não precisamos de nenhum recurso à divindade para compreender o que tal cena nos quer dizer. Ali está representado, ao mesmo tempo, todo o desamparo humano e as possibilidades da sua reparação. 

A marca do humano é o desamparo. Somos lançados prematuramente no mundo, antes que tenhamos alcançado o nível de desenvolvimento suficiente para fazer o que qualquer mamífero consegue: erguer-se sobre as patas e buscar o peito da mãe. Deixado as suas próprias custas, o ser humano não vinga. Para isto estão ali o pai e a mãe do menino. Para fazer por ele o que o seu desvalimento não permite. 

Mas o que representam, então, a manjedoura e sua palha, os animais e seu silêncio? Cada um de nós pode tentar sua própria interpretação. Para mim, a pobreza do cenário serve para dizer que não se precisa de muito para estar no mundo. Para o frio da noite do deserto, está ali o calor da palha. Para as tentações do poder dos homens, ali está a humildade dos bichos. 

O menino vai crescer, vai deixar seus pais, vai correr o mundo pregando uma mensagem até hoje incompreendida. E quanto mais longe estiver deste cenário de origem, quanto mais certeza tiver da sua divindade, mais perto estará da imagem final da solidão e do sofrimento. Por isso, a cada ano, devemos nos lembrar que para sermos solidários em nosso desamparo de humanos, precisamos guardar em nós o calor da palha, a humildade dos bichos. melhor hospedagem de sites

Imagem obtida em: peregrinacultural.wordpress.com

11 dezembro 2012

Amigos de cabeceira





Faz tempo que os dois estão no quarto comigo. Se eu perder o sono, como bons amigos, eles são capazes de passar a noite acordados comigo, me dando prazer, mexendo com minha imaginação. Um se chama “onde a minha rolleiflex?”, o outro, “A idade das chuvas”. Dois maravilhosos livros de poemas.  O primeiro foi escrito por Márcia Maia e o segundo por André Ricardo Aguiar.
 O de Márcia Maia chegou primeiro. Ganhei na mesma noite em que foi lançado como vencedor dos Prêmios Literários Cidade do Recife. Noite boa, rodeada de amigos, no salão de festas do velho teatro do Brum, na parte antiga da cidade.
O de André Aguiar, fui buscar mais longe, num bar superdescolado em Vila Mariana, São Paulo. Noite boa, rodeada de gente que nunca tinha visto, mas que eram meus íntimos. A melhor qualidade de um bar é a de tornar amigos de infância gente que nunca se viu na vida.
Mais do que dois livros, são dois cúmplices que dormitam em minha cabeceira. A qualquer sinal de insônia, eles também se acordam e me perguntam se quero conversar. Quero sim. E o primeiro me diz: “por detrás do temporal/o céu tremula”. E se aquieta meu coração que se acordou aos pulos com o sonho ruim. E o outro arremata: “Nada pesa/mais que o coração”. E o meu coração pesado mais se aquieta.
Sei que alguns leitores zangados vão dizer que poemas não são feitos para aquietar o coração de ninguém. Até concordo com eles. Mas é preciso que o poema primeiro dite o tom que precisa para entrar em sintonia com o leitor. Depois, matreiro, enche você de inquietação.
E o que mais me inquieta em Márcia Maia são os ritmos insólitos que consegue extrair dos seus poemas. É uma técnica só dela, que nos impõe a cadência exata que emoldura o sentido das palavras.
Já em André, inquieta o insólito das imagens, a mudança brusca do sentido em direção oposta ao lugar comum que o leitor viciado ocupa.
Por mais um bom tempo esses amigos velarão á minha cabeceira. Até que se cansem das minhas insônias e queiram se mudar para uma prateleira cômoda, onde possam dormir sossegados.  

10 dezembro 2012

O baú do anão


04 dezembro 2012

Coração perdido




Era mais ou menos por ali, numa dessas árvores do bosque por trás da gaiola das araras. Eu adoro araras, disse ela. E ficou batendo os braços como asas, gritando com a voz esganada: arara, arara. Ele ficou meio encabulado, mas depois achou graça nela sendo arara. Achou graça assim, sem rir. Quando ela parou, ele segurou na mão dela e foram em direção ao bosque por trás da gaiola das araras.
Quanto tempo fazia? Quarenta, quarenta e cinco? Não era bom nesse negócio de tempo. Sabia apenas que fazia muito, muito tempo que estiveram ali, na sombra daquele bosque de temperatura amena, quase fria. Muito tempo, mas ele ainda sentia a pressão dolorida da casca da árvore na palma de sua mão. Da tensão do seu braço estendido apoiando o peso do seu corpo. Do jeito dos olhos dela pedindo que ele se chegasse mais. Do calor do corpo dela quando ele se chegou mais.
Não se lembra quanto tempo ficaram assim. Não era bom nesse negócio de tempo, já disse. Lembra, sim, de cada beijo, de cada parte do corpo dela por onde viajou sua mão. De cada suspiro que ela deu e de quantas vezes disse meu amor. Lembra do canivete no bolso, do canivete na mão, do canivete na casca da árvore desenhando um coração. E dentro do coração a letra agá de Henrique e a letra tê, de Tereza.
Foi mais ou menos ali, no fundo daquele bosque, por trás da gaiola das araras. Nesse lugar, por onde agora ele errava, os olhos trespassando as árvores em busca de uma árvore que não estava ali. Procurava uma árvore com um rapaz, uma moça e um coração com duas letras. Procurava um tempo que dormia naquele bosque, cansado de esperar por eles dois.
Arara, arara, gritava a arara, ainda ali, como se fosse ela.

Este conto faz parte do meu novo livro "O baú do anão".