26 novembro 2013

Olho roxo


 

         Estou com um problema sério. Minha mulher está com um olho roxo, fruto de uma queda no banheiro da casa de uma de nossas filhas. E este é justamente o meu problema. Quem não me conhece direito vai pensar que fui eu que tingi o olho dela de roxo. E a coisa pode piorar quando ela explicar que caiu no banheiro. Toda mulher que aparece de olho roxo por conta do marido, diz que levou uma queda no banheiro. Já sugeri que ela usasse uma camiseta com a frase: “não foi meu marido”. Mas aí, podem pensar que fui eu que a obriguei a usar a camisa.
         Nunca convivi tão de perto com um olho roxo. E confesso que é uma experiência incômoda. Além do mal-estar estético que causa, o olho roxo é o símbolo universal da violência. Nos filmes, nas histórias em quadrinhos, quando se quer mostrar que um personagem levou uma surra, ele aparece com uma mancha roxa ao redor de um olho.
         De uns tempos pra cá, o olho roxo tem servido para denunciar a violência contra a mulher. As marcas da brutalidade podem se espalhar por todo o corpo, mas é o hematoma no rosto que demonstra, na forma mais dramática, a covardia do agressor.
         Nas ruas de junho, a repórter Giuliana Vallone foi atingida no rosto por uma bala de borracha. O seu olho roxo virou símbolo da campanha “Muda Brasil”, o que inspirou o fotógrafo Yuri Sardenberg a fotografar uma galeria de famosos maquilados com um olho roxo como parte de um protesto contra a violência policial.
         A quem interessar, comunico que o olho de minha mulher já começa a voltar ao normal. É um olho roxo prosaico que causou alguma dor e um pouco de preocupação. Mas serviu para lembrar dos muitos outros olhos roxos que ficarão marcados para sempre na memória das vítimas da violência, que ainda protegem seus algozes com a mentira da queda no banheiro.  


Imagem da cantora Alinne Rosa, participante da campanha “Dói em todos nós”, obtida em WWW.bahianamidia.com.br 

24 novembro 2013

A bruxa aprendiz



         Uma aprendiz de bruxa passou o último sábado com a gente. Logo de manhã, meu irmão telefona, aos prantos, comunicando que um dos seus filhotes de cachorro morreu por conta de uma virose. O filhote que sobrou também estava ameaçado.
         Logo depois, telefona minha nora informando que o marido, logo, meu filho, tinha sido picado por um escorpião e estava sendo cuidado no setor de vítimas de animais peçonhentos do Hospital Universitário.
         Minha filha mais nova decidiu dar uma trégua ao vegetarianismo e nos convidou para jantar um peixe que ela mesma tinha comprado e iria preparar. No caminho da casa dela, fomos ameaçados duas vezes de sofrer um acidente por imprudência alheia.
         Tudo estava pronto para o jantar no terraço ao ar livre, com duas pequenas lanternas para abrigar velas que tínhamos levado de presente. Ficamos bebericando, acompanhados de queijo e presunto de Parma, sem desconfiar que a pequena bruxa estava por perto. Quando o prato principal chegou na mesa, cumpri o doloroso dever de comunicar que o peixe estava estragado.
         Não satisfeita, a bruxinha providenciou uma nuvem escura e mandou que chovesse sobre nossas cabeças. Arrastamos a mesa para o terraço coberto e continuamos a tomar vinho com o que restou do queijo e do presunto.
         A feiticeira aprendiz deve ter ficado furiosa com a sua incompetência em estragar a nossa noite.  Deu uma carga extra na varinha mágica e radicalizou: levou minha mulher para o banheiro e fez com que levasse uma bruta queda, batendo com o lado esquerdo da testa no mármore da pia.

         A pobre bruxa deve ter ficado assustada com o enorme galo que brotou no supercílio da sua vítima. Mais assustada deve ter ficado hoje de manhã, quando viu a mancha roxa em volta do olho de Glória. Tenho certeza de que ela fugiu apavorada, pois a manhã do domingo transcorreu em paz. E se não fosse o olho roxo de minha mulher, ninguém ia mais se lembrar de sua visita inoportuna.

06 novembro 2013

Cila



Caminhava na praia entre o mar e a falésia quando avistei sobre as pedras um vulto que me pareceu de uma mulher. Enquanto andava em sua direção, configurava-se o corpo acinzentado de uma morta, fendido pelo sal e pelo sol. A boca meio aberta calava angústias. A cabeça pendida denunciava um longo tempo de agonia. Cheguei mais perto e mostrou-se a cauda ressequida de sereia. O ventre alto tinha marcas de coisas que antes pendiam dali. 

Próximo daquela criatura que o tempo me trouxera, pude entender o que queria de mim: que contasse a sua história. Que a salvasse do esquecimento e da tortura a que estava condenada. A cada vez que o mar subia, à medida em que as águas molhavam suas carnes, sua memória despertava aos poucos, revelando traços, formando quadros, ligando tempos, mostrando cenas. Mas quando alguma história parecia se formar, já era tempo de baixar as águas. E com o líquido se esvaía também a possibilidade das lembranças. Seca e esquecida ficava ao pé da falésia até que novamente o mar subisse. Então eram outros os traços, os quadros, os tempos e as cenas. Uma história outra se insinuava. Mas antes de qualquer esboço de sentido, a maré novamente vazava. 

Adivinhei seu nome: Sila. Busquei os antigos que narraram seu mito. Assumi o fardo de contar seus infortúnios. Até onde permitiu o engenho, teci uma memória para Sila. Para que ela enfim pudesse livrar-se do esquecimento e eu pudesse enfim livrar-me do peso da sua presença. É o resultado deste esforço que ofereço agora.