29 março 2015

18 – A ciranda do Cheiro

Almeidinha - o herói de paletó

Um folhetim burocrático


                  
                   Pensei que a conversa com Padre Guido fosse me esclarecer as idéias, mas saí da casa paroquial muito mais confuso do que entrei. Eu nunca toquei num copo de bebida, sempre achei que fosse pecado, mas no caminho de casa eu me sentia como se fosse um bêbado. Cambaleava no meio da rua e, para cada lado que eu pendia, aparecia uma figura diferente me chamando. Uma vez era Dr. Pacheco e seu sorriso falso. Logo depois era minha senhora com sua cara de abuso. Mais tarde era Dona Jackeline com sua roupa escandalosa. E agora tinha essa Luana que eu havia esquecido e que me aparecia com sua cara rechonchuda de menina, suas juntas de manteiga e seu cheiro de suor.
                   Demoro a enfiar a chave na fechadura. O braço tenso bate a porta contra a parede, acostumo meus olhos no escuro da casa. Não tem ninguém. Melhor assim. Caminho no escuro até o banheiro, tomo meu banho, boto meu pijama. Apanho um lápis e o caderno de palavras cruzadas e vou para o quarto. Desta vez não tranco a chave. Pouco me importa se aquela mulher vem ou não vem dormir em casa. A casa é minha, a cama é minha. Se ela achar ruim me encontrar na cama, que vá dormir de novo no sofá. Desde ontem que o lençol está lá.
                   Preciso terminar este bloco de palavras cruzadas. Não consigo começar outro exercício sem terminar o que estiver fazendo. E aqui está faltando completar uma palavra que começa com “ele” e termina com “esse”. Vamos ver qual é a questão: “ilha da Grécia antiga, famosa por sediar encontros amorosos femininos”. Aqui cabe um “e”, depois um “esse”, depois um “bê” e, por fim, um “o”. L-E-S-B-O-S. Então era isso que Padre Guido queria me dizer. Essa vagabunda – que Deus me perdoe – está me enganando com outra mulher? Minha vista escureceu e eu não me lembro mais do que aconteceu. Acho que desmaiei.
                   Acordei no meio da noite com a boca seca, precisando molhar a garganta. Tinha dormido sentado na cama, a cabeça enterrada no peito, o lápis ainda entre os dedos e o caderno de palavras cruzadas caído no chão. A lâmpada do teto ainda estava acesa. Só então me dou conta de que não estava sozinho na cama. Encolhida no seu lado, ainda com a roupa da rua, minha senhora, quer dizer, Sandra, ressonava soltando uns miados, como se cochichasse com outra pessoa. Não dava para entender, mas era claro que ela estava choramingando.  Não sabia o que ela dizia, mas estava claro de onde ela tinha vindo. Do seu corpo saía um cheiro que não era dela. Talvez fosse o cheiro de Dona Jackeline. Que me importava? Mas com certeza não era o cheiro de Luana. O cheiro de Luana era só meu.
                   De repente, me veio a conversa com Padre Guido. Sim, eu tinha de deixar de ser capacho. Tomar um atitude firme na minha vida. Isto significava que teria que sair de baixo dos pés do Dr. Pacheco e dessa estranha que agora dorme fantasiada com um cheiro alheio. Esta manhã mesmo o Dr. Pacheco ia ver com quem estava falando. Vou fazer das tripas coração, mas crio coragem para lhe dizer um não. Sei que vou tremer, gaguejar, quase chorar, mas digo não.
                   Mais difícil vai ser com essa aí, que parece dormir o sono dos justos. Que parece sonhar com uma certa ilha da Grécia antiga, onde muitas mulheres provavelmente andam nuas aos beijos e abraços. Que deve ter vindo de uma outra ilha, mais perto daqui, onde encontrou-se com a dona desse cheiro. Mais difícil vai ser o encontro com esta mulher ilha que nunca me deixou pisar na sua praia.
                   Achei melhor pra mim me aquietar, tentar dormir, mesmo envolvido por aquele cheiro misterioso que, estando em Sandra, pertence a uma Jackeline que pode ser Luana. Sandrajackeluana. O cheiro dessas três me arrasta para o inferno do meu sono sem sonhos. 

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